A corvina é um peixe. E é só isso que eu sei. Aliás, sobre peixes eu sei pouco. Sempre fui um pescador de meia-tigela. Conheço mais de futebol, desse sempre gostei, embora não tenha sido um jogador tão bom assim. Minha querida mãe diz que eu mais ficava no chão do que jogava; era do tipo cai-cai. Hoje é conveniente colocar a culpa em algo ou alguém e eu costumo culpar meus joelhos pelo mau desempenho nos campos, ambos — mais o direito que o esquerdo — tortos desde pequeno. A verdade, confesso, é que eu era um típico pé-torto, literalmente. Cheguei a usar botas ortopédicas quando criança. Ah, e era um pé-torto também com as mulheres. É que sempre fui muito tímido e, sendo assim, fazia pouco para conquistá-las. Justamente por isso — e com o auxílio do fato de que nunca fui um galã de novela — não conquistava muitas delas. Até que namorei com algumas, mas nunca por conta de tê-las conquistado num papo ousado; as conquistas eram geralmente obras do acaso. Pescaria, futebol e mulheres, apesar de tudo, sempre estiveram presentes em minha vida, também desde a infância — no caso das mulheres, evidente, desde a adolescência. Eram rotineiras minhas visitas a um pesqueiro qualquer, ao campo de futebol do Esporte Clube Vila Galvão nas manhãs de domingo ou às festinhas juvenis repletas de possíveis paqueras. Cresci assim e uma improvável história da minha vida contada em livro traria, necessariamente, esses capítulos.
Certa vez, numa pescaria, uma vara equipada com molinete e uma boa linha teve suas iscas lançadas ao mar. Iscas, no plural. É que na linha havia, como se fosse uma espinha de peixe, coitado, vários anzóis. Vários, uns três. E há de se concordar que três anzóis para a mesma vara de pescar é um número considerável. Eu no barco, sentado, uns 15 de idade, só vendo. Segurando a arma estava Tio Daniel. Dizia que pescaria três peixes numa só fisgada. Três corvinas. Em instantes, a vara envergou. Envergou tanto que meu coração pulou de alegria. Pesquei um! A fisgada parecia ter sido forte o bastante para que nem fosse necessária a puxada. Cheguei a saltar, mas Tio Daniel pediu para que eu ficasse ali, aguardando paciente como são os bons pescadores. A linha percorria a água no mesmo ritmo em que as pobres corvinas tentavam se livrar da armadilha e eu imaginava que não seria possível identificar se, de fato, três peixes estariam ali. Dois ou três minutos depois, para minha surpresa, Tio Daniel tirou os anzóis da água. Três corvinas. Três. Pensando bem, talvez ele tenha me pregado uma peça — como as que meu querido pai pregava, fisgando um peixe e pedindo para que eu puxasse, dando impressão de que eu mesmo havia pescado —, mas aquela história me marcou. Até hoje.
Aos domingos, quando pela manhã jogava bola, acordava bem cedo. Se até hoje, adulto mergulhado em trabalho, sou do tipo noturno, imagine na época. Imaginou? Errou. Aos domingos eu acordava bem cedo. 6h00 e nem ligava. Adorava jogar futebol no — à época aparentemente muito mais gigante — campo de futebol do Esporte Clube Vila Galvão. Vestia a 8, um short azul curto e uma camiseta comum, pois a de jogo nos entregavam no vestiário. Era um bando de moleques correndo atrás da bola, sem a mínima noção de posicionamento, e as mães gritando na arquibancada. Corre, filho! Vá atrás da bola! E, exceto pelos goleiros que fincavam o pé sob a gigantesca trave, todos os outros corriam, do zagueiro ao ponta esquerda. Chegava a subir poeira do campo, numa espécie de nuvem de areia recheada de molecada. Às vezes até o técnico — geralmente o amigo bêbado dos pais — parava de dar orientações à beira do gramado para também correr. Era uma bagunça. Pela manhã, em casa, era possível acordar com o cleck-cleck das travas da minha chuteira no chão; eu vestia a 8, um short azul, uma camiseta comum e a tal chuteira com travas que faziam barulho no caminhar. A primeira, lembro-me, foi um presente do Tio Daniel. Ele dizia gostar do meu estilo meia-direita e não havia uma só partida em que não me dava força no pré-jogo. Criança, encarava aquilo com muita seriedade e e as palavras de motivação daquela figura adulta ecoava como algo incrivelmente profissional. Ecoam como lembranças até hoje.
Tio Daniel dizia que eu tinha sorte com as mulheres, que todas as minhas namoradas eram magras, bonitas e charmosas. E eu dizia, pela força que me dava contra minha timidez e por todo o tempo que gastava nas avaliações de garotas, que ele seria padrinho do casamento entre mim e a sortuda que porventura subisse no altar ao meu lado. E não havia uma só vez que ele não me cobrava, a cada vez que nos reencontrávamos. O tempo passou e na última vez que me encontrei com Tio Daniel, há alguns meses — creio que estávamos sem um encontro havia 3 anos —, a primeira coisa que fez foi me abraçar forte e beijar meu rosto, como sempre fazia. Depois perguntou sobre as mulheres, cobrou o cargo de padrinho e pediu para que eu mostrasse a foto da namorada, ali mesmo no celular. Aprovou. Perguntou, então, se eu andava jogando bola, se continuava sendo aquele camisa 8 promissor. Por fim, lembramos com muitas gargalhadas a história das corvinas. Ele teimava em não assumir o truque e reiterou que pescara, de fato, as três de uma só vez. Será?
Hoje, infelizmente, recebi a notícia de que eu nunca saberei a verdade sobre essa histórica fisgada. Nunca. Hoje, a notícia da morte do Tio Daniel me pegou de surpresa, colocou-me de bruços no tablado como num nocaute relâmpago. Um soco certeiro na fuça. Foi-se um dos pescadores mais habilidosos. Foi-se um técnico de futebol de primeira. Foi-se embora um dos meus padrinhos.
Um beijo, Tio.