O livro dos sonhos — Parte I

 

1954

 

1954. Manhã de sol, 30 de setembro. Às 6h10, o silêncio era cortado pelo som dos bem-te-vi! e por duas carroças arrastadas aos pangarés em direção à praça principal, cambaleando pela empoeirada avenida. Levavam leite. Ao longo do caminho, do alpendre dos casebres, ouvia-se também o locutor da rádio em volume baixo, numa danada chiadeira ao fundo, com sua voz empostada para todo o Brasil: este noticiário é um oferecimento de Romi-Isetta. O lado bom da vida é o lado de dentro de uma Romi-Isetta! Nas casas, o som dos talheres de café da manhã; homens e crianças ao trabalho e às aulas. A cidade acordava, era tomada pelo sol e pelo cheiro de café moído.

Ali, ao sul das Minas Gerais, morava Odorica Aureliana, uma pequena garota de família pobre e sofrida, filha de Benedita Aureliana Perantula e Pedro Bassiano. Perdera o pai precocemente anos antes, antes mesmo que pudesse conhecer melhor os detalhes históricos de sua imigração italiana; Pedro nascera em Genova. Ainda muito jovem, viu a mãe Benedita alugar uma pequena olaria — local onde se produziam tijolos com barro ou argila — para o sustento da família à custa de muito esforço. Morou num casebre com chão de terra batida, chegou a dormir enrolada em folhas de bananeira que as protegia, e mais um bando de crianças, do frio. Irmã de quase uma dezena, viu o irmão Venuto gastando todo o dinheiro da olaria com jogos e bebidas; viu a irmã Ausenda — os nomes eram italianos — trabalhando num hotel ainda criança, preparando refeições e servindo hóspedes; viu a irmã Maria trabalhando como doméstica, também bem cedo. Maria, inclusive, certa vez foi ao circo e lá aprendeu como os pirulitos eram feitos artesanalmente. Aos 6, a pequena Odorica já os vendia na rua. Olha o pirulito! Olha o pirulitô! Batia de casa em casa a vender, sempre se aproveitando do fato de que, à luz dos anos 50, naquela pequeníssima cidade, as mulheres geralmente tinham muitos filhos. Chegou a propor um trabalho em conjunto, nonde ela venderia enquanto a irmã gritava. Maria tinha vergonha. A vendedora, de fato, era a pequena Odorica. Olha o pirulito! Olha o pirulitô! […] Ali vivia.

Naquela manhã de setembro, às 6h10, ao som dos pássaros, a pequena já estava de pé a pensar no breve passado. Em frente ao espelho, olhou para si. Toda bendita manhã, buscava o leite e o pão, depois moía o café. Ainda criança, já havia deixado de vender pirulitos artesanais para cuidar de crianças e auxiliar nos afazeres domésticos; era empregada em casa de família. Tinha somente 7 anos. Preparava o desjejum diariamente, ajeitava as pequeníssimas crianças e punha-se a conversar com os adultos antes de ir à escola. Não aumente meu salário e logo saio!, bradava em voz infantil. Ganhava alguns poucos mirreis ao mês e chantageava os patrões Homero e Maria com certa frequência. Fique mais um ano conosco e, prometo, arrumarei seus dentes!, retrucava o patrão, tentando convencê-la a permanecer. Chegou a ir pr’outra casa de família, onde as crianças eram birrentas e a mordiam. Não gostava e, meses depois, voltou à casa de Homero. Aliás, era de se entender que a pequena garota continuasse a trabalhar; afinal, mesmo pobre, ela era bem alimentada pelos patrões. Às 6h55, já havia ingerido uma generosa medida de café com leite e a metade do pão sovado que lhe era oferecido; o restante, guardava para o recreio. O sinal da escola tocava pontualmente às 6h55 porque às 7h00, também pontualmente, entravam todas as crianças. De tão pequena, o alerta ecoava por toda a cidade. De tão pequena, ninguém se atrasava em Careaçu. […] Ao meio-dia a garota já estava de volta e o almoço, pronto. Comia às conchas e não raramente — aos 7! — lavava toda a louça.

Passou o tempo e a pequena chegou a cobrar a promessa do saudoso Homero. Senhor Homero, ‘óia, quando o senhor vai colocar o meu dente novo?, num sotaque tipicamente mineiro. Sem dentes novos, teve uma infância sofrida, mas feliz. Vendeu pirulitos, trabalhou em casa de família. E não há dúvidas de que também subiu em pés de jabuticaba e se esbaldou no rio que atravessava a cidade; certamente contou o dinheirinho que trazia para ajudar em casa, aprontou, apanhou da mãe e depois, com o rosto ainda sujo por uma mistura de pó e lágrimas, sorriu. Escreveu em vida uma história digna de um livro que bem mais tarde transformar-se-ia numa de suas vontades: O livro dos sonhos, com a história de sua vida. Ali, onde o silêncio era cortado diariamente pelo som dos bem-te-vi! e por carroças arrastadas aos pangarés, crescia uma mulher digna de homenagens.

Crescia Odorica.

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