Marginália

 

 

Inspirei-me na imagem de um rapaz com fisionomia debilitada, encostado à porta do meu carro pedindo algumas moedas para uma refeição. Ele faz parte de um grande grupo e está na base de sua pirâmide, não às margens. Na verdade, muito pelo contrário, ele está bem longe das margens e é uma pessoa absolutamente comum numa sociedade redesenhada, chata, com a qual EU, sim!, me relaciono no papel de um marginal. Ao menos me esforço para tanto.

O repórter noticia: um garoto esfaqueou outro. Noutro canal — sobre assuntos consonantes —. seguidas de uma entrevista sensacionalista com a mãe do jovem assassino, as imagens chocantes de um engavetamento com vítimas fatais ocorrido pontualmente às seis da tarde numa rodovia movimentada que, justamente por conta do acidente, parecia ainda mais abarrotada pelo trânsito. Frases quase sem vírgula, também exceções: afinal, não é sempre que uma criança resolve ferir com uma faca e, dada a quantidade de carros no dia-a-dia, um acidente com morte é menos provável do que se pensa. (…) O pior: é justamente a audiência, ou seja, o interesse do povo, que justifica toda a carniçaria televisiva. A TV nunca expôs tanto sangue e tantas lágrimas. A sociedade — com a qual eu me relaciono no papel de marginal — quis assim.

Nas redes sociais, biquinhos e brilhos, falsos olhares e filtros. Tôdo mundo na internet é bonito, com acento circunflexo e tudo. Cidadania e responsabilidade socioambiental são expressões da moda. Adiciona ali, curte aqui, tira foto com efeito para dar um tapa na pantera, pensa antes de escrever. No fim das contas, compra pela internet, trabalha com a internet, coloca-a no bolso. Mundo virtual. Mas aí tem o tal do contato, a coisa da pele e o treco fica engraçado: a gente tem mil amigos nas redes sociais, porém na hora do vamos-ver, do tête-à-tête, engole a seco, olha torto, vira a cabeça para lá. Já não sabe mais para onde vai e, quando vai, se engancha numa cadeira de cinema, em frente a outra tela ainda maior e um balde de pipocas melequentas. O mundo já não quer saber de andar com as mãos dadas, deitar na grama do Ibirapuera ou passear sob os 22 Celsius de uma noite sem chuva, a gastar a sola do sapato. Na prática, a sociedade na forma em que está é fosca, em branco e preto, mas brilha muito nessa internet multicolorida. Restart.

Fora da web, na escola, o professor de tão desvalorizado substitui o sonho de ter filhos e uma dívida impagável por um par de cachorros com pedigree. Trata-os como criança. Com um apoio pífio, prepara-se pouco para exercer sua função e, à frente da sala, fala o que lhe vem à telha. O aluno, coitado, sai das redes sociais e senta lá, como fez Cláudia, fingindo que bem entende. Pensando bem, começou mal: ainda jovem, no auge das 6 da matina, a contragosto enfiou-se num uniforme mequetrefe para uma aula de logaritmo, um intervalo à base de croissant de presunto e queijo e outra hora-e-quarenta — ainda mais insensata — sobre cadeias de carbono. Foi à faculdade e o negócio piorou. Nada se encaixou à formação de verdadiniha. Aula vai, aula vem, aula foi, o aluno acabou fondo e o professor continua lá, anos e anos depois, lecionando no seu melhor estilo meia-boca, preocupado com filhos sob a forma de cachorros e as continhas apertadas ao fim do mês. (…) Educação de verdade, que é bom!, nada — ou muito pouco. Pela educação, nada. Coisas da nova sociedade.

E, ainda assim, mesmo quando não deu audiência às TVs e adquiriu uma boa formação, o indivíduo apresenta tendências à massificação. Nas novas relações, novas reações. Mulheres independentes, distintas, já não querem relações sérias, compromissos formais. Homens engravatados passaram a classificar o casamento como algo supérfluo. Para muitos deles, a família deixou de ser a instituição mais poderosa; foi substituída pela imagem. E pela tal da imagem, gente da alta sociedade — essa high society na forma em que está — olha-se no espelho, tira fotos com filtros, falsos olhares, caras e bocas, joga a própria essência fora. Introjeta-se, por fim, à moda, na moda, coloca-se no topo da pirâmide. O rapaz pedinte bem abaixo, na camada oposta.

(…)

Na nova sociedade, chata como está, eu sou marginal por opção. Significa que me esforço para, de certa forma, estar separado da esfera social, ocupando as beiras, as margens, longe do centro das coisas, afastado da moda vã, sempre à espreita. Marginais estão à beira da sociedade e eu optei: sendo assim, serei um marginal, muito obrigado. Afinal, enche-me a paciência ver a sociedade na forma em que está; da TV às redes sociais, da escola às novas relações. Cruzes!

E aí? Vai encarar?

Corra, Pai, corra!

Árvores ao redor, sol, uma roupa despojada e a imagem, à direita, de um homem grande a caminhar em frente, forte, fotografado de costas, cercado de boas energias por dentro e por fora: nada pode representar melhor a imagem que, desde criança, eu tenho de meu pai — Odair Girarde.

De modo quase perfeito, é como se o retrato ilustrasse a relação de exatas três décadas que temos: ele à frente; eu, seguindo seus passos. Na mente, infinitas, somente boníssimas lembranças. (…) Nunca me bateu; lembro-me vagamente só de um puxão de orelha. Não me acordava às 6 para as viagens; enrolava-me nas cobertas e me acomodava no banco de trás para que eu pudesse acordar lá. Tirou fotos minhas fazendo xixi na praia, onde vivia enrolado na toalha do São Paulo Futebol Clube. Contratava uma espécie rara (e falsa!) de He-Man — o super heroi — para animar minhas festas de aniversário. Levou-me certa vez ao gramado do Morumbi, aos 8, quando fui mascote do time são-paulino, na época com Silas, Müller e Pita. Venceu ao meu lado o primeiro campeonato de pipa do Guilherme de Almeida, fantástico colégio onde me pôs a estudar desde o primário. Explicou-me a diferença entre advogado de defesa e advogado de ataque. Assinava com a testa franzida os bilhetes que, enviados pelas professoras, noticiavam minha má conduta em sala. Atendia aos meus telefonemas chorosos, aqueles do tipo vou-contar-tudo-para-o-meu-pai. Trazia-me, todo engravatado, centenas de figurinhas e dezenas de times de botão com os quais me divertia sozinho no chão da cozinha. Comprou-me o primeiro equipamento de som depois de perder a aposta que fizera comigo — eu passaria de ano em troca da parafernalha. Esperou-me dormindo no carro enquanto, já como DJ, eu fazia a festa. Entregava-me, na adolescência, duzentos mil cruzeiros para ir à praça azarar as meninas de Careaçu, pequena cidade de onde trazíamos lambaris e mandis. Bem da verdade, meu pai sempre deixava os peixes fisgados para que eu, sentindo-me o pescador profissional, pudesse retirá-los da água com uma emoção danada. Viu-me crescer, chorar, estudar. Comprou mais de trezentos livros e apoiou-me durante todo o tempo em que, estressado e encarecando, eu estive a pastar no mercado de trabalho e durante todo o período universitário. Abraçou-me forte quando me viu de beca, formando-me em Administração de Empresas pelo Mackenzie. Assinou o contrato social de minha primeira empresa, na qual, mesmo tendo injetado 99% dos investimentos iniciais, tinha apenas 1% de participação. Pressionou-me, como bom pai, por bons resultados. Ensinou-me que ter paciência é nobre. Colocou suas leves mãos nos meus ombros quando precisei. Chorou ao meu lado quando precisávamos. (…) Por fim, criou-me sem proferir sequer mil palavras de sermão. Era simples: numa singela relação de olhar, um olho no outro, eu já havia aprendido tudo, ou melhor, ainda aprendo. Odair Girarde me adotou não somente como filho, mas sobretudo como um parceiro, um amigo para toda hora.

São lembranças de um pai que, vivo, permanece ao meu lado a comemorar seu 64º aniversário. Contaria, aqui, se num post coubesse, a história de outras milhões de boas lembranças. (…) Numa das últimas, o retrato de árvores ao redor, sol, uma roupa despojada e a figura, à direita, de Odair Girarde, meu querido pai, homem grande a caminhar sempre em frente, forte, cercado de boas energias por dentro e por fora. Um exemplo a ser, literalmente, seguido.

(…)

Corra, Pai, corra! Temos muito a viver.

A vida em cores

 

 

Com cinco ou seis retas, é fácil fazer um castelo?

Onde não se pode ver, brilha um minúsculo ponto branco, luminoso, num ambiente escuro e apanhado pelo único momento de toda a trajetória em que a ausência absoluta de sons é real. No silêncio, sem sequer que sua progenitora seja prontamente avisada, um fenômeno: o nascimento de um novo ser humano. O início. Lá no obscuro oposto, do outro lado da reta, outro ponto, mas este paira silencioso por ter naturalmente se silenciado. Cinzento e apagado, sem luz, é o fim. O pó. […] No meio, barulhentos, estão caminhos tortuosos e coloridos entre um ponto e outro. E sem entender muito bem o porquê — ou decerto para fazer com que a tal da vida tenha sentido —, contamos pequeníssimas histórias. Vivemos, do verbo viver.

Como no conto da batata que, quando nasce, espalha toda a rama pelo chão, também o ponto luminoso, justamente por ser branco, passa a partir dali a expor cada uma das infinitas cores de seu espectro. E o mundo em cores passa, por sua vez, a pulsar dia após dia. […] O verde das palmeiras que circundam o hospital. O traseiro pálido de um recém-nascido estapeado segundos após sair da placenta. O berço rosa bem claro para meninas; azul-bebê para os meninos. Também o tom ligeiramente amarelado do sorriso de uma criança que insiste em não escovar os dentes. As casas, árvores, sóis e carros rabiscados com lápis de cor. Os uniformes escolares após aulas mergulhadas em tintas guache. O pé encardido do moleque que, descalço, chuta a bola no campinho de terra batida. O caramelo do pé-de-moleque. As notas vermelhas na escola, aplicadas pela professora megera. A menina desavergonhada que, mesmo nova, dá sinal verde à mão-boba do jovem adolescente. O caro vestido dourado da debutante em seus quinze anos de idade. A moda da balada, que de cores nada sabe: xadrez ou o pretinho básico? A faixa colorida conforme o curso, amarrada à cintura do universitário no dia em que veste a beca. A cor da fonte para a escrita do currículo. A tela azul do computador, que precisa ser reinventado em novas cores e formatos. O branco de volta em função da palidez. Como nas notas, o vermelho em cifras bancárias. O coração que, pintado em vinho e ferido a flecha num papel, simboliza o amor. Verdinhas gastas num casamento à beira-mar. Convidados em diversos tons de bege para combinar com a praia e a luz do dia. O azul do céu visto sobre as nuvens durante a viagem de lua-de-mel para Veneza, com suas águas escuras. Toda uma vida multicolorida ao lado de pessoas amadas. Novos pontos luminosos num dorme e acorda, dorme e acorda, tudo em cores, até que dorme e não acorda mais. Depois vira pó. Vira hipótese, diria Lobato. Descolore. Torna-se um eterno silêncio.

Cada qual, aqui, conta a sua história, rabisca o tempo entre um ponto e outro da maneira que bem entende. Podem ser traços azuis, verdes, amarelos, em anil, vermelhos, pretos ou na cor que vem à ponta do lápis. Elementar, porém, é saber que cada traço conta um pedaço. E, assim, da luz à escuridão, do início ao pó, toda uma vida em pequeníssimas histórias.

E você?
Numa folha qualquer, desenhas um sol amarelo ou o quê?

Ensaio sobre a gratidão

 

 

Difícil é ser grato. De repente porque, por natureza, somos limitados às nossas conquistas. Paralisamo-nos à mesma medida em que nossos objetivos são alcançados. Tudo, não importa: pode ser o amor em qualquer esfera, o dinheiro, o poder, a vida que pedimos a Deus. Parece-me que, quando conquistamos, paramos ali. Surgem novos objetivos. Perde-se a graça. Perde-se de vista o porquê de tudo. Então, por fim, por termos, deixamos de agradecer.

Agradeçamos, no imperativo, soa clichê e tampouco esta discussão. Ainda assim, reflitamos. (…) Aqui, reflito porque penso. Posso. Digito porque tenho movimentos nos dedos. Posso. Você lê porque vê. Pode. E entende não somente porque vê, mas também pelo fato de possuir aí dentro um sistema nervoso central aparentemente intacto, com cérebro e tudo. Tens um. Temos. E, sendo assim, reflitamos: não nos falham os olhos, os dedos, a mente ou a própria reflexão. Não nos falham a fala, os sons, os aromas, o toque ou os sabores. Levante-se e, se bem consegue, sentirá que também os músculos da perna não lhe faltam. Funcionam, você os tem. E, mesmo assim, não somos gratos.

Agradeçamos ainda soa clichê e tampouco esta discussão, mas continuemos a refletir. (…) A luz somente valorizamos quando se esconde. Basta que se vá e tudo ao redor — exceto as bugigangas modernas movidas a baterias — puf.  Corre-corre a procurar uma vela ou algo que possa ali nos iluminar. O monitor pára repentinamente de funcionar e o texto, se não foi salvo, vai junto à danada da luz, para bem longe. Se o telefone é sem fio, findam-se também as possibilidades de receber telefonemas e, junto, as de um banho quente. Eleva-se, então, um novo objetivo: clamar pela volta da energia. É um tal de se virar para sobreviver até que, num click, a geladeira volta a funcionar. Eba! Voltou a luz! E então, somente aí, um obrigado. É a gratidão de volta. Eu era feliz e não sabia.

Questiono-me ¿por que agradecemos somente quando a gratidão se torna imprescindível? Talvez porque fomos educados a utilizar obrigado somente quando recebemos algo. Do mesmo modo, é como se a gratidão não fosse intransitiva, mas simplesmente uma resposta ao mimo. Não agradeço por estar vivo, mas porque sobrevivi. Não agradeço porque tenho o movimento das mãos, mas porque não o perdi. Não agradeço porque a luz elétrica está disponível, mas quando ela volta. (…) Seguimos não dizendo obrigado pelo corpo saudável, pelo alimento do dia-a-dia ou mesmo pela conta paga, enfim, no fim do mês. E igualmente não agradecemos quando, vivos, nossos parentes — filhos, pais, avós, netos — estão próximos a festejar, quando nos acomodamos em nossos postos de trabalho, quando Deus nos dá a bela vida que pedimos ou quando, depois de um banho quente, deitamos sob o calor dos edredons e abraçamos o amor de nossas vidas.  Somos ingratos. Molestos. Não agradecemos.

Agradeçamos a cada conquista porque, pensando bem, agradecer não é clichê. Posso. Podemos. (…) Clichê é não agradecer. Clichê é valorizar somente quando perde.

(…)

Obrigado.

Flashes

 

 

Dona Ivone morreu. Sua morte — disseram-me há pouco que em decorrência de problemas renais — me fez refletir. E não porque já tive problemas renais, pois a derradeira hora chega a todos e sobre isso não se deve discutir, mas sobretudo porque o contexto no qual a notícia nos foi dada trouxe à tona de meu universo criativo um complexo tema: as lembranças.

Lembro-me de Dona Ivone fumando, elogiando-me às conchas quando aos 15. Lindo!, dizia ela. Dizia conjugado, pois, à medida que o tempo passava — e obviamente por conta das alterações físicas que a idade nos traz — o tempo do verbo permanecia estável, sempre no passado. Ela deixou, sendo assim, de me chamar de lindo e passou a dizer que, quando jovem, eu era lindo. Era. Quando jovem. E de repente não era mais. Eu havia envelhecido, engordado algumas arrobas e meus cabelos já não me deixavam modelar um topete a la Elvis. Lembro-me que, mesmo surpresa com a ineficácia de meu corpo em sua tentativa preguiçosa de manter a antiga beleza adolescente, Dona Ivone ainda cochichava nas raras vezes em que nos encontrávamos, sempre aos elogios. Educadíssimo!, murmurava em novo tom às senhoras à mesa. Voz grossa, típica de fumante compulsiva. Mulher distinta. Nem de minha família fazia parte, ao menos não diretamente.

Dona Ivone era irmã de um já falecido tio, por sua vez cunhado de minha mãe. Fernando. Ela e eu não nos víamos, exceto nas festas de família em que a presença era imprescindível ou por quase-pura sorte. Na prática, uma relação do tipo quase-nunca. Morreu, coitada, mas meu choro não se deu por isso; deu-se pelo contexto no qual a notícia nos foi dada.

Careaçu, de onde escrevi parte deste texto, é uma cidade de 8 mil habitantes. Uma aldeia, diria, civilizada, no sul das Minas Gerais. Em Careaçu minha querida mãe nasceu. E quando ali viveram meus familiares, por volta de 1950, nada havia além de folhas de bananeira, o Rio Sapucaí, a igreja, mato verde e uma televisão um-ponto-zero com a qual assistiam aos jogos de Pelé e Garrincha. Diz minha querida mãe que, quando criança, alimentou-se mal — consequência óbvia das condições financeiras de Benedita, falecida avó —, trabalhou logo cedo e tão logo veio a São Paulo, quando conheceu meu pai. Careaçu, de onde escrevi parte deste texto, é um caldeirão de histórias mágicas que ferve às borbulhas até hoje.

Quando em Careaçu recebi a notícia da morte de Dona Ivone, não chorei. Chorei depois. (…) Porque, entre ouvir a notícia que partiu da voz embargada de Fernanda — prima, filha de Fernando e sobrinha de Ivone — e chorar, de fato, deparei-me com o semblante oco de meus familiares. Ali, era como se o respirar fizesse mais sentido, como se o valor da vida, num flash, se elevasse às alturas. (…) Flashes à mente — talvez os mesmos que precedem o último suspiro —, toda uma vida que ia embora, nossas lembranças à flor da mente e o clima, ali, absolutamente oco. Então chorei. Ivone tinha ido, mas nós ainda tínhamos muito o que fazer, muita história para contar. A vida: sobretudo, precisávamos vivê-la.

(…)

Ficaram as lembranças. Ainda ficam.