A questão da hospedagem

 

"Não feche a porta!"
 
Imagine um quarto ajeitadinho. Ou nem tanto assim. Com porta, claro. Não somente alguns armários, gavetas, cama, mas bastantes coisinhas; um dormitório bem típico do jovem moderno que, embora repleto de informações, parece-me hoje analisar e refletir bem menos quando comparado ao mesmo, de mesma idade, mas das gerações passadas. Arrumado ou não, bem decorado ou não, ajeitadinho ou não, imagine também que cada um de nós temos um quarto como esse. Peculiar, particular.

Em toda verdadeira relação humana, é como se abríssemos o tal espaço para que a outra pessoa o visitasse. E conosco o mesmo; adentramos o dela. Digo relação verdadeira porque, caso não seja, a mesma fica restrita à visão da porta e, por detrás dela, onde tudo acontece, nada se vê. É somente a travessia da porta que nos possibilita enxergar segredos com os quais, numa verdadeira relação, teremos que conviver ad aeternum. Quando a porta se abre — e somente assim, atuando como visitantes — conhecemos os defeitos, as manias, os desejos e os vícios da outra pessoa. E também é só quando nos abrimos à visita que podemos expor a nossa essência. O quarto, o pós-porta: tudo que realmente somos.

Um bar agitado. O rapaz se encontra com a garota — ambos primorosamente bonitos — pela primeira vez. Trocam olhares. Ele se ajeita de modo a conquistar uns minutos de sua atenção. Então, embasbacada, ela cede. Acomodam-se à mesa, agora juntos, e pedem algo para beber. Papeiam durante uma ou duas horas. Ele não fuma; ela é viciada, mas não diz. Ele não trabalha e ainda depende do miúdo dinheiro da família. A conversa se desenrola. Chegam a rascunhar uma situação em que se beijam, mas nada. Ela se surpreende com toda a gentileza do rapaz quando por ele a porta do carro é aberta. Iam, naquele momento, para um lugar menos movimentado. E ele também se surpreende, pois — embora o fizesse única e exclusivamente para impressioná-la — nunca havia aberto a porta do carro do pai para uma mulher. Um novo rascunho e, enfim, o beijo. Supérfluo. Mal sabiam: passariam, a partir dali, a se relacionar. Casariam meses depois. E em poucos anos, então, o divórcio. A lógica. De fato, eles se entreolharam pela primeira vez atraídos pela beleza. O primeiro bate-papo fluiu como se os problemas não existissem, mas não só. Foi somente aos quarenta dias no novo apartamento que ele a viu com um cigarro pela primeira vez, mesma época em que os problemas financeiros começaram a afetar a relação. Não mais abria as portas do carro para que ela entrasse. Não mais se beijavam apaixonadamente. Abriram-se, sim, as portas através das quais, anteriormente, anos antes, não se podia enxergar a verdadeira essência de cada um. Ela era viciada, imatura e, muito embora qualificasse o marido como o mais bonito dentre os homens, não estava pronta para um relacionamento verdadeiro. No marido, coitado, ela já não enxergava nada além do que um escudo contra a sua solidão. Desleixada, não cuidava da casa, muitas vezes bagunçada como poucas. Noutro lado, ele não era tudo que dizia e, apesar de sonhar com um casamento estável e uma vida abastada, não gostava de trabalhar. Assumia não levar jeito para nada e, culpando o mundo, ele se desculpava a cada fracasso profissional. À luz da primeira impressão, nada se encaixava. Nada. Sendo assim, foi somente quando eles passaram a se hospedar, um no quarto do outro, que a verdadeira relação se aflorou. Nada de culto à beleza, fúteis papos e pseudogentilezas; na prática, até então tudo havia acontecido às portas fechadas. E boas relações não se restringem à visão frontal da porta; restringem-se, sim, àquilo que está por detrás dela.

Entre mim e você, é como se abríssemos nossos espaços íntimos para visitação. Arrumado ou não, bem decorado ou não, ajeitadinho ou não, as coisas só evoluem quando gostamos do que vemos no quarto, através das portas alheias. Ali, os vícios, as manias, os desejos e os defeitos, todos eles, são compartilhados e, sobretudo, aceitos. A hospedagem somente assim pode se dar. (…) É assim na família, com os verdadeiros amigos, com os verdadeiros amores.

Não fecha a porta, ‘tá? Pode ser? Tranquilo?

MCMLXVII

 

 

À noite, por volta das 22h30 de ontem, um jantar impecável com Diana. Na volta, a história. O boletim de ocorrência foi registrado por volta das 3h00 de hoje, 19/05/2011. Nele, uma das versões: a minha. Noutra parte, a versão de Manoel Missias. Com i. (…) Aqui, o protagonista.

Meados de 1967: Beatles, Rolling Stones, The Doors e Bee Gees emplacavam suas músicas no cenário mundial. The Summer of Love. No Brasil, dava-se início à Tropicália de Caetano. Sixties. Foi também em 1967 que deixamos de ser a República dos Estados Unidos do Brasil e denominamo-nos, a partir dali, República Federativa do Brasil. Éramos, para que se tenha ideia, cerca de 95 milhões de habitantes no país. E lá nos cafundós do nordeste, em 1967, saudável de pais saudáveis, nascia o menino Missias.  Mais precisamente em Pernambuco, no oitavo dia do mês de agosto. Oito do oito de 1967.  Manoel Missias. E o menino, ali, cresceu, mudando-se mais tarde para São Paulo. (…) Perderia a mãe, vítima de câncer, em 2003, aos 36, já em São Paulo. O pai, coitado, de tão velhinho se despediu da vida na última semana, primeira quinzena de maio de 2011. Tristes dias. Atualmente, já aos 44, Manoel Missias é um homem sofrido, pintor das paredes de nossas casas, ganha cerca de 600 reais por mês e tem uma moto, talvez o seu único patrimônio. Com la poderosa, por volta das 0h10 de hoje, voltava da casa de familiares para onde tinha ido em busca de uma cesta básica. (…) Encontrei-me com Missias, sua moto e a cesta básica. Na entrada de Guarulhos pela Fernão Dias, nosso primeiro encontro. Ali, um encontro para se esquecer (ou não).

À noite, já por volta de 0h00, eu voltava do jantar impecável com Diana. A região, uma lástima: favela empesteada de jovens usando drogas, gente paupérrima à beira de um córrego, prostituindo-se à luz gambiarrenta dos postes. Nunca amedrontado, sempre corto caminho por ali, sempre no limite de velocidade. (…) Ontem, nem tanto. Nem no limite estava. Por ali eu passava, lento, quando meu carro foi atingido por uma moto. Pareciam atordoados, ambos sem capacete: Kleberson e Manoel Missias. Missias, diz o próprio, conduzia a até-que-arrumadinha motoca. Engatei a ré, retornei 150 metros e, no chão, o garupa. Meu carro com escoriações laterais; a moto, toda desajustada. O pé de Kleberson quebrado, e o garoto sofrendo. Estávamos na fronteira entre São Paulo e Guarulhos e foram mais de cinquenta minutos até que alguém do resgate pudesse chegar; havia um impasse sobre qual cidade deveria atendê-lo. (…) Já cercado por curiosos, Kleberson foi levado. Horas depois, mal sabia, passaria por uma cirurgia. (…) Ficamos, depois de tudo, Manoel Missias, seu amigo Téo e eu. Procurávamos uma solução para o saneamento dos bens materiais. (…) Bem da verdade, eu fui bastante ingênuo: o local era perigosíssimo; Missias, paupérrimo. Prova disso é que o mesmo estava triste pela moto, mas não só; pedia encarecidamente para que guardassem a cesta básica que havia conseguido naquela noite. (…) Depois, com a chegada de uma viatura da polícia, as coisas começaram a fazer sentido. Acabamos numa delegacia no Jaçanã, tradicional bairro de São Paulo, e o relógio já mostrava 3h30. Ali, pensando bem, entendi.

44 anos depois, conhecemo-nos Missias e eu. Ele me elogiou. Disse-me que era um rapaz educado. Chorou quando falou da recente morte do pai. Enquanto esperávamos pelo aval dos policiais, Missias narrou sua história desde a época em que chegou em São Paulo. Desabafava. Parecia-me precisar de alguém que o pudesse ouvir. Por um momento, visivelmente faminto, decerto pensou em me pedir algo (ao invés de pagar pelos danos do meu carro). A essa altura, nem mais pensava nisso. A essa altura, já às 4h00, eu refletia sobre aquele rapaz e sobre a realidade que o assolava 44 depois de seu nascimento, em 1967. Era órfão, infeliz, faminto e precisava de alguém. Manoel Missias chorou. Eu havia entendido o meu papel. (…) Precisava apoiar a mão no ombro de alguém que, há 10 dias, perdera o pai. Precisava viver mais um choque de realidade para entender o sentido de minha própria vida. Precisava valorizar os meus pés, que nunca sofreram sequer uma fratura. De repente porque ninguém o tinha feito, eu precisava ouvir o desabafo de Missias, que desabafar tanto precisava. Precisava informá-lo também de que a vida continua. E, dali em diante, continuaria. (…) Então, ele pôs as sujas mãos nos olhos e novamente enxugou as lágrimas.

Missias ainda não sabe, mas não vou cobrá-lo pelos danos no meu carro. Melhor que abasteça sua geladeira com o mesmo dinheiro. Vou tê-lo, sim, como mais uma lição de vida. Missias certamente não teve oportunidade de, numa família paupérrima de Pernambuco, curtir Beatles e Bee Gees. Talvez nem tenha se deparado com uma TV em cores tão cedo. É um retrato vivo com o qual alguns de nós nunca nos depararemos na vida; um ser humano que bem ilustra as condições lamentáveis em que muitos vivem: fome, sofrimento e descaso. (…) Que Missias tenha sorte, que prospere e que seja orgulhoso dos pais que, um dia, orgulhosamente o tiveram em 1967. (…) Continuarei a levar a minha vida, mas nunca me esquecerei da história contada por mais esta noite.

 

Deus o abençoe, Manoel Missias.

A Mãe edifica sua casa

 

 

Em frente ao seu sorriso, escrevo. Numa linda foto está ele aqui, ainda mais lindo, posto em frente ao meu computador. Um porto seguro. Um olhar de mãe como não há em outro. Você, que, de tanto sonhar, construiu um sonho por toda a vida. Realizou. E o faz desde a época em que dormia sobre folhas de bananeira até hoje, quando aos beijos nas gôndolas de Veneza. Construiu todo um mundo só seu. Edificou uma casa, uma família, um oceano de amor que existe em decorrência disso. Tudo, absolutamente tudo, porque você edificou. Sozinhos, você e seu companheiro. (…) É que, no final das contas, a mulher sábia edifica sua casa. E aqui, minha querida Mãe, quero homenageá-la por ter seguido os ditames divinos. Construiu-nos. Fez-nos ser quem somos. E aqui, em frente ao seu sorriso, escrevo. Por ti. Pelo seu dia.

Feliz Dia das Mães.

Sobre o isolamento

 

 

¿É uma mania — como se realmente pudéssemos entender o que é relevante — de restringir a visão somente àquilo que realmente importa, não? Digo o ser humano, aquele que comumente se isola e que, ali, só, acaba por isolar de outras variáveis somente o que lhe vem à mente. Isolar-se. Isola-se. De certa forma, dizia Maslow, existem necessidades sociais sem as quais provavelmente não se alcança a auto-realização; não se vive. E, assim, isolado, o ser humano não sobrevive. Morre. (…) Isola quando julga, quando se relaciona, quando planeja o futuro ou quando decide. Isola quando opta por fumar ao invés de cuidar da própria saúde, quando discute ao invés de entender os motivos ou ainda quando agride com palavras que não machucam a pele, mas ferem a alma, ao invés de bem discursar.

Julgar é isolar. Porque julgar é adentrar o universo de possibilidades e pinçar, dali, somente uma delas. É olhar para o todo, destacar o que se entende como conveniente e, então, julgar. Isola-se, assim, o que parece convenientemente útil; descartam-se as inutilidades inconvenientes. (…) Casar é isolar. Porque casar é excluir das possibilidades bilhões de outros seres humanos para optar por aquele, com características únicas. Isola-se dos outros um ser, somente um. Único. (…) E planejar é isolar. Porque vislumbrar o futuro sob a ótica de três ou quatro insights ideais é típico de quem, como bom ser humano, sabe isolar como nenhum outro animal. Deixa-se de lado, assim, o a priori impossível para se vivenciar o provável. (…) Também, decidir é isolar; afinal de contas, a vida é feita de escolhas e o simples fato de eliminar uma opção para escolher outra — principalmente quando poucos aspectos são levados em consideração durante a avaliação da alternativa — já lhe conferiria o título de isolador.

O fumante isola o prazer e, por ele, fuma. O marido isola o lazer e, somente por ele, diverte-se com amigos sem a aprovação da esposa. O chefe grita com funcionários e, sendo assim, se isola. E, isolado, não sobrevive. (…) O que se espera, na prática, é que a cabeça seja aberta o suficiente para que o isolamento pleno, injusto, seja visto como uma anomalia — e o é, de fato — , mas não só: espera-se também que nada seja absolutamente isolado e que, de um ou outro modo, tudo seja levado em conta. Pela justiça, por mim, por você, por nossas relações. (…) Viver é não se isolar. Não isolar.

E aí? Quer tc?

Sobre a descaracterização

 

 

É de se pensar. Talvez o maior desafio do ser humano seja único: não se deixar levar. Digo porque, à medida que se deixa, o ser humano perde parte de sua essência (…) e longe dela, coitado, é infeliz. Longe de sua essência, bem distante, um novo mundo surge; nele, sub-obstáculos ainda mais complexos, mas sub. E estes sub-obstáculos só aparecem porque o suposto ser se deixou levar, deixou que um pouco de si fosse embora, ou todo um pedaço, por um ou outro motivo qualquer. Deixou-se. Então, a descaracterização.

Na criança, a essência. Nascemos com uma. Quando vive a infânciabelle époque — , o ser humano vive também a sua essência. Na criança, todo sorriso é verdadeiro, os atos não são presos à dinâmica social. Os pequenos usam roupas íntimas — e somente elas — em locais públicos nos dias de calor; tomam banho de chuva porque refresca; lambuzam-se com o chocolate posto num copo de geleia; dizem eu te amo nas situações em que realmente sentem vontade; brincam com bambolês; não se preocupam com o que outros vão dizer enquanto dançam músicas sertanejas ou sucessos do tecnobrega; vão à escola para aprender, porque realmente querem. Enfim, experimentam o todo da verdadeira essência. (…) O adulto, por outro lado, é descaracterizado. Tudo muda. Tudo já mudou. E sua evolução num sistema repleto de aspectos descaracterizantes, fato óbvio, o descaracteriza: a família, a televisão, a escola, os falsos amigos, o dinheiro, as rígidas hierarquias, o mercado de trabalho, o status, as exigências mundanas. Suas verdadeiras características se vão e, então, embora vai também a sua essência. Os marmanjos, reflita, mesmo sedentos por fazê-lo, não se expõem ao ridículo ato de usar roupas íntimas em locais públicos num dia de calor; compram guarda-chuvas enfeitados porque — dane-se que a chuva refresca! — não podem chegar molhados no trabalho ou até mesmo em casa; o chocolate, consumido com cuidado, não mais lambuza os lábios, a toalha de mesa e a face; comumente emputecem o termo eu te amo, dizendo-o em situações de mais pura mentira; não brincam de bambolê porque, além de ser taxada de gay, tal brincadeira se faz, sob seu ponto de vista, inútil demais; deixam, assim, de curtir músicas populares porque tais obras fazem parte do cotidiano de pessoas com as quais muitos não querem se relacionar; vão às aulas em busca de notas, diploma e motivados pela exigência de um acirrado mercado de trabalho do qual precisam — por imposição do próprio sistema — fazer parte. É diferente. E como se estivessem puxando-a dos peitos, com força, arremessam a essência para bem longe. Por fim, descaracterizam-se.

À medida que evoluímos, vamos também nos atrelando às mais diversas situações e, com isso, mudamos nossas feições. Crescemos em forma física, regredimos mentalmente. Eu não tenho dúvidas de que o maior desafio do ser humano — ou um dos maiores — é não se deixar levar. Não perder, à medida do possível, a essência da criança. Lambuzar-se com o chocolate, com os sub-obstáculos da vida, brincar como se não houvesse amanhã, não levar a vida tão a sério, dançar como se ninguém estivesse assistindo e dizer eu te amo, ah! o amor!, quando o coração pedir. Porque a essência da vida não está fora de mim, de nós todos, mas bem aqui dentro.

Viva!