Imagine um quarto ajeitadinho. Ou nem tanto assim. Com porta, claro. Não somente alguns armários, gavetas, cama, mas bastantes coisinhas; um dormitório bem típico do jovem moderno que, embora repleto de informações, parece-me hoje analisar e refletir bem menos quando comparado ao mesmo, de mesma idade, mas das gerações passadas. Arrumado ou não, bem decorado ou não, ajeitadinho ou não, imagine também que cada um de nós temos um quarto como esse. Peculiar, particular.
Em toda verdadeira relação humana, é como se abríssemos o tal espaço para que a outra pessoa o visitasse. E conosco o mesmo; adentramos o dela. Digo relação verdadeira porque, caso não seja, a mesma fica restrita à visão da porta e, por detrás dela, onde tudo acontece, nada se vê. É somente a travessia da porta que nos possibilita enxergar segredos com os quais, numa verdadeira relação, teremos que conviver ad aeternum. Quando a porta se abre — e somente assim, atuando como visitantes — conhecemos os defeitos, as manias, os desejos e os vícios da outra pessoa. E também é só quando nos abrimos à visita que podemos expor a nossa essência. O quarto, o pós-porta: tudo que realmente somos.
Um bar agitado. O rapaz se encontra com a garota — ambos primorosamente bonitos — pela primeira vez. Trocam olhares. Ele se ajeita de modo a conquistar uns minutos de sua atenção. Então, embasbacada, ela cede. Acomodam-se à mesa, agora juntos, e pedem algo para beber. Papeiam durante uma ou duas horas. Ele não fuma; ela é viciada, mas não diz. Ele não trabalha e ainda depende do miúdo dinheiro da família. A conversa se desenrola. Chegam a rascunhar uma situação em que se beijam, mas nada. Ela se surpreende com toda a gentileza do rapaz quando por ele a porta do carro é aberta. Iam, naquele momento, para um lugar menos movimentado. E ele também se surpreende, pois — embora o fizesse única e exclusivamente para impressioná-la — nunca havia aberto a porta do carro do pai para uma mulher. Um novo rascunho e, enfim, o beijo. Supérfluo. Mal sabiam: passariam, a partir dali, a se relacionar. Casariam meses depois. E em poucos anos, então, o divórcio. A lógica. De fato, eles se entreolharam pela primeira vez atraídos pela beleza. O primeiro bate-papo fluiu como se os problemas não existissem, mas não só. Foi somente aos quarenta dias no novo apartamento que ele a viu com um cigarro pela primeira vez, mesma época em que os problemas financeiros começaram a afetar a relação. Não mais abria as portas do carro para que ela entrasse. Não mais se beijavam apaixonadamente. Abriram-se, sim, as portas através das quais, anteriormente, anos antes, não se podia enxergar a verdadeira essência de cada um. Ela era viciada, imatura e, muito embora qualificasse o marido como o mais bonito dentre os homens, não estava pronta para um relacionamento verdadeiro. No marido, coitado, ela já não enxergava nada além do que um escudo contra a sua solidão. Desleixada, não cuidava da casa, muitas vezes bagunçada como poucas. Noutro lado, ele não era tudo que dizia e, apesar de sonhar com um casamento estável e uma vida abastada, não gostava de trabalhar. Assumia não levar jeito para nada e, culpando o mundo, ele se desculpava a cada fracasso profissional. À luz da primeira impressão, nada se encaixava. Nada. Sendo assim, foi somente quando eles passaram a se hospedar, um no quarto do outro, que a verdadeira relação se aflorou. Nada de culto à beleza, fúteis papos e pseudogentilezas; na prática, até então tudo havia acontecido às portas fechadas. E boas relações não se restringem à visão frontal da porta; restringem-se, sim, àquilo que está por detrás dela.
Entre mim e você, é como se abríssemos nossos espaços íntimos para visitação. Arrumado ou não, bem decorado ou não, ajeitadinho ou não, as coisas só evoluem quando gostamos do que vemos no quarto, através das portas alheias. Ali, os vícios, as manias, os desejos e os defeitos, todos eles, são compartilhados e, sobretudo, aceitos. A hospedagem somente assim pode se dar. (…) É assim na família, com os verdadeiros amigos, com os verdadeiros amores.
Não fecha a porta, ‘tá? Pode ser? Tranquilo?