Re: Esquecimento

 

esquecimento

 

Certa vez meu pai me mandou um e-mail que versava sobre um senhor que, depois dos 60, era esquecido pelos familiares. Talvez ele quisesse nos passar a mensagem de que estava sendo esquecido por todos. Pois chegou a hora de eu responder a esse e-mail. E em público.

Pai, mesmo antes do desaparecimento de meu querido avô — Ernesto —, você já era referência na família. Depois, mais ainda. E se pensarmos que você ainda é visto por todos como referência, então já aí seu e-mail contém falhas. Afinal, se és uma referência, é evidente que não pode ser dado como esquecido. Mas ainda temos os fatos do cotidiano, e aí vão alguns exemplos. Minhas queridas sobrinhas Nicoli e Marina não se esquecem, diariamente, que é o vovô quem as leva e quem as busca no colégio. E também não se esquecem do vovô nas horas boas — Afinal, onde ele escondeu as balas? — e nas raríssimas horas de bronca — Será que vovô vai ficar bravo se eu mexer no computador dele?. Nunca fica. Aliás, a quem Marina recorre quando precisa convencer a mamãe Cynthia a dormir na sua casa? Preciso dizer? Quem anda contigo, sabe: basta percorrer dois ou três quilômetros nas ruas de Guarulhos ou Careaçu, nas Minas Gerais, para que sua teoria vá para o brejo; não há uma ocasião sequer em que você não cumprimente alguém, acene ou grite “Como você está, pinguço?”, referindo-se a algum querido amigo. Sempre brincalhão, até meus amigos se lembram de suas piadas. Todos eles te chamam de Seo Oda. E é esse Oda, Odair, Bigode, enfim, é esse o homem que não se dá como esquecido. Estou para te dizer que, se depender de minha mãe — Odorica — sua teoria não tem o mínimo fundamento. Essa mulher, pela qual eu também vivo, pensa em ti o dia inteiro. Odair saiu para caminhar, Odair vai almoçar, Odair foi à Loja Maçônica, Odair está roncando na outra cama. É a companheira que por ti vive. Vivem juntos, passeiam, brincam, viajam, não se desgrudam. Não se esquecem sequer por um segundo. Ninguém te esquece.

Pai, respondo-te para dizer que estou descartando seu e-mail. Você não se parece nem um pouco com o injustiçado senhor que, depois dos 60, foi esquecido pelos familiares. Muito pelo contrário: hoje você está recebendo de familiares, irmãos e amigos uma justíssima e sincera homenagem, esta que comprova: você não somente é lembrado, mas digno de prestígio. Simbolicamente, esta celebração te eterniza também nas nossas mais bonitas e divertidas lembranças. Meus parabéns!

E-mail respondido.

O livro dos sonhos — Parte IV

 

Casal

 

O Clube Esportivo da Penha foi fundado no primeiro dia de 1930, existe até hoje e é um dos poucos espaços poliesportivos que ainda não foram destronados pelas atrações das áreas de convivência nos condomínios, pelas modernas academias de ginástica ou mesmo pelos comportamentos sedentários que afastaram definitivamente muitas crianças e adultos das atividades ao ar livre. Nos primeiros anos de sua existência, o CEP — como o clube também é conhecido na zona leste paulistana — era uma opção distinta ao público, que se divertia em suas piscinas flutuantes naturais sobre o Tietê. Em 1953, porém, a alteração no traçado do rio quase pôs tudo a perder. Não fossem as manobras administrativas e as importantes campanhas para atrair novos sócios e mantê-lo vivo, o Clube Esportivo da Penha certamente não teria sido palco do primeiro encontro entre Odorica e Odair. Foi num baile do CEP, em meados de 1967, que os jovens se conheceram. Mal sabiam: mesmo tendo que enfrentar cinco problemas já nos primeiros encontros, o amor duraria para sempre.

Vilma, dê uma olhadinha naquele rapaz ali. Odorica havia se empolgado com a presença dele e o apontava para uma de suas melhores amigas. Era Odair. Estavam num desfile no Clube Esportivo da Penha, onde na mesma noite aconteceria um baile dançante. À época, era comum que homens convidassem mulheres para uma dança a dois. E foi o que aconteceu quando o baile se iniciou. Galanteador, Odair se aproximou e a convidou para dançar. Então, o primeiro problema: ao invés de estender a mão a Odorica, o jovem Odair a estendeu a Rosinha. Rosinha era amiga de Odorica e o fato de Odair ter convidado sua amiga para dançar a deixou furiosa. Pensei que ele me tiraria para dançar! Mas a fúria não durou muito, pois bastou que mudassem a música para que Odair fizesse a escolha certa. Nova dança e um novo convite: Odair e Odorica, enfim, dançavam pela primeira vez. Ao longo da festa, não só dançaram, mas também conversaram bastante, conheceram-se melhor. O segundo problema apareceria ao fim do baile, na mesma noite: chovia muito na Penha e Odair não era do tipo abastado, que tinha carro e muito dinheiro. A ideia, a priori, era que ele pudesse convidá-la também para uma carona, mas não pôde: deixou-a no ponto de ônibus mais próximo para que, sozinha, a jovem voltasse a São Miguel. E foi. Voltou só, chegou ensopada. […] Passaram-se alguns dias e marcaram um novo encontro. Odorica exporia os primeiros indícios de que era uma pessoa paciente, tanto por aceitar o novo convite quanto pelo terceiro problema: Odair marcou o novo encontro e não compareceu. Fim, não o verei mais!, finalizou. Na prática, não foi assim. Já na segunda-feira, Odair também exporia os primeiros indícios de que estava apaixonado: pediu que um amigo fosse à porta da Philips exclusivamente para entregar a Odorica um pequeno bilhete. Quero encontrá-la novamente. Odorica, na ocasião, foi taxativa: Quer? Pois que ele venha aqui! Então, no outro dia, logo cedo, mesmo com o compromisso de bater o ponto pontualmente às nove no banco onde trabalhava e fez carreira, lá estava Odair em frente à Philips, às 6h30 da manhã. Encontraram-se e marcaram um novo encontro, de novo. Por sorte, uma nova chance ao jovem galanteador. […] Quarto problema: além de galanteador, Odair jogava futebol com amigos, tocava numa fanfarra — era literalmente um fanfarrão! — e ainda tinha o péssimo hábito de chegar atrasado aos compromissos pessoais. Por conta disso, um novo e impressionante bolo com chá de cadeira: Odair não compareceria novamente ao novo encontro, de novo. A fúria de Odorica, então, voltou à tona: Fim, eu nunca mais o verei! Mas não; afinal, a uma também apaixonada mulher bastaria somente um novo bilhete e Odair ganharia uma nova chance. O bilhete chegou, mas o local do encontro, por uma inteligente decisão de Odorica, seria outro. Se quiser me ver novamente, pois que venha à minha casa! Tarefa árdua a Odair, que, sendo de Guarulhos, precisaria tomar um ônibus até a Penha — onde ficava o clube —, descer no centro comercial de São Miguel e finalizar o trajeto a pé, até a casa da jovem. Com o pé cortado, imagine, seria ainda pior. […] Era noite e, pela própria segurança, Odorica estava acompanhada de Benedita, sua mãe, que não se cansava de alertar as filhas sobre a cafajestice dos homens. Mais uma vez, fato já comum, Odair se atrasou. Ele não deve vir, dizia a desditosa Odorica. Na outra ponta da rua, porém, minutos depois, Odair apontou. Com ele, o quinto problema: o jovem galanteador sofria, de fato, com um corte na pele e vinha mancando; o pé esquerdo num sapato e o outro — o machucado — num chinelo. Bem verdade, era a prova de amor que Odorica tanto esperava. Evidente, todo o esforço de Odair era abastecido pela vontade que ele tinha de tê-la para sempre. […] Então, sem ao menos que houvesse um pedido formal de namoro, começaram a namorar. Casariam em 1972, criariam filhos a partir de 1981 e viveriam as bodas de esmeralda — em comemoração ao 40º ano de casamento — em 2012. Permanecem juntos, permanece o amor.

Até hoje.

O livro dos sonhos — Parte III

 

Miss

 

Vencedoras do concurso Miss Universo devem ter os punhos levemente mais flexíveis. Os acenos são incríveis.

[…]

Em 1967, cobravam 5% ao mês para emprestar dinheiro. Benedita, a pedido da filha, tomou um valor emprestado, algo em torno de R$200 nos dias de hoje. O agiota chegou a visitar o casebre da família em São Miguel para negociar. O objetivo era garantir o transporte de Odorica, já aos 20, em sua luta diária para conseguir um novo emprego; pegava ônibus. Benedita o guardava de forma disciplinada, abastecendo a filha a toda saída. Boa sorte, Odorica! […] Num dos dias, a garota disse não precisar do dinheiro. Mãe, hoje vou procurar emprego ao lado da Dutra. Não preciso do dinheiro, vou a pé. E foi bem cedo. Veio da zona leste de São Paulo, cruzou a rodovia Presidente Dutra, andou por muitos quilômetros, passou ao lado das grandiosas SKF, Pfizer e Olivetti, e, por fim, já beirando o meio-dia, chegou à Philips. Ao chegar, nada. Portões fechados e fábrica inacessível aos visitantes desconhecidos porque, obviamente, já naquela época era importante que alguém indicasse ao empregador o candidato à vaga. Odorica tinha ido a pé, sem dinheiro, sem nenhuma indicação e ainda aparentava cansaço. Naturalmente não conseguiria entrar. Arriscou-se ao perguntar o nome do segurança que guardava a entrada da multinacional e, com sucesso, continuou: Carlos, eu preciso trabalhar. O que eu faço? Não conheço ninguém. Descobriu que Senhor Reinaldo, chefe do departamento pessoal, estava prestes a chegar. No momento em que ele passar, garota, indicou o prestativo funcionário, mostro-o para você! Moreno baixote, Reinaldo foi abordado por Odorica minutos depois, assim que chegou do almoço. Trabalho desde os 7 anos, Senhor Reinaldo, já tenho carteira assinada; trabalhei na Estrela, na Nitroquímica e estou precisando demais desse trabalho. Recebeu das mãos do baixote um pequeno cartão e uma orientação. Volte amanhã. Exames médicos, testes e até continhas de matemática. Noutro dia, logo cedo, agora por indicação de Reinaldo, Odorica lá estava, preparando-se para compor a linha de montagem da Philips. Mal sabia, ajudaria a empresa por longos 12 anos produzindo aparelhos televisores, rádios e muitos outros produtos que revolucionariam toda a geração seguinte. Mal sabia, viraria chefe de produção algum tempo depois. Talvez a mais famosa.

Em 1968, já como funcionária, recebeu um convite enquanto trabalhava. Ela ainda pouco entendia, mas todo o fuzuê na seção acontecia porque os diretores passeavam por ali naquele exato momento, todos a escolher as representantes do concurso Miss Philips de 1968. Fez-lhe um convite um deles, o Senhor Jardim, certamente deslumbrado com sua beleza. Você tem chances, que tal aceitar o meu convite e participar de nosso concurso? A princípio envergonhada, Odorica procurou saber quem seriam as concorrentes ao pleito e, além, ainda precisava criar coragem para dois outros árduos afazeres: o primeiro era avisar o aspirante-a-marido Odair — com quem viveria um amor cinematográfico — de que participaria do tal concurso; o segundo, caso vencesse a competição, era participar do Programa Silvio Santos. […] Dia do evento e a música estava por conta do maestro Caçulinha. A família estava presente, o que incluía a mãe Benedita e alguns de seus irmãos. A plateia contava ainda com algumas das mais importantes autoridades da época, dentre elas o prefeito de Guarulhos. Ainda nervosa, a candidata deixou os últimos retoques do penteado sob a responsabilidade da irmã Ausenda. Chegava a hora. Na passarela, Odorica! E assim, sem que nada a pudesse impedir, a antiga vendedora de pirulitos estava a desfilar, linda. Era, talvez pela primeira vez na vida, o centro das atenções. Fotos, flashes, assobios. E pouco bastaram as concorrentes. Em 1968, a coroa era dela. Odorica era a Miss Philips.

[…]

Como funcionária, doze anos se passaram. Em 1979, como prova de que as fases da vida são como ondas, Odorica estava de saída da empresa. A Philips estava se mudando para a zona franca de Manaus. Ao agradecer por tudo, foi vista acenando de forma incrível em direção aos antigos colegas de trabalho, em tom de despedida: o punho direito levemente mais flexionado, um sorriso lindo no rosto e a pose única, incomparável.

Era a mais bela miss.

O livro dos sonhos — Parte II

 

Pelé

 

O choro de Pelé não era à toa. A taça do mundo, enfim, era nossa. E pela primeira vez. Diziam: com brasileiro não há quem possa! Também, que tipo de time poderia suportar a pressão de uma seleção brasileira com Gilmar, Djalma Santos, Bellini, Orlando, Nilton Santos, Zito, Didi, Garrincha, Pelé, Vavá e Zagallo? Quem poderia? Os caras eram bom no samba, bom no couro. Ligada em todo canto, a voz de Osvaldo Moreira se estropiava ao bradar o eterno Gol de Pelé! Aos 46 do segundo tempo, Pelé acaba de marcar o quinto tento do Brasil! Em 1958, os televisores eram incomuns, de modo que a maioria sintonizava a Rádio Nacional. Não era rara a cena na qual dezenas de pessoas se reuniam para ouvir os jogos. Ali, na pequena Careaçu, não era diferente.

Enquanto o povo comemorava o primeiro título brasileiro na Copa do Mundo, um pequeno garoto refletia. Tinha apenas 14 anos. À época, passava pela cabeça do pequeno Pedro a ideia de viajar arriscadamente a São Paulo. Como bom homem, pretendia tirar a família da situação em que vivia por ali, no sul das Minas Gerais. Mamãe, vou a São Paulo em busca de melhores condições. Sabia que os primeiros anos seriam duros; afinal, menores de idade ganhavam metade dos salários comuns aos já adultos. Assim que me ver livre do exército, aos 18, venho em busca de nossa família, dizia confiante. Então, em 1959, um ano depois de assistir à seleção canarinho conquistando a Jules Rimet, a família inteira de Pedro viria a São Paulo. Além do garoto sonhador, viajaram Benedita, Venuto, Ausenda, Maria, Zezé e a pequena Odorica. Venderam tudo em Minas Gerais — panelas, camas, mesas e, anos depois, até o próprio casebre! — em busca de uma nova vida. Clichê da época: eram pobres, vinham de longe e acabaram pairando em São Paulo.

Nos primeiros quinze dias na cidade grande, restou-lhes um porão. Até que arrumassem uma casa para morar, viveram com Tio Joaquim, irmão de Benedita. Alugaram, enfim, um casebre quarto-cozinha e nada mais. Sequer fogão tinha, este improvisado no lado externo da casa, no chão mesmo, suscetível às pancadas de chuva. Para o sustento, a matriarca pôs-se a lavar roupa fora, o pequeno Pedro passou a trabalhar como tapeceiro e Ausenda, como doméstica; Maria ingressou numa oficina de costura e a pequena Odorica, antes vendedora de pirulitos e empregada do casal Homero e Maria, virara faxineira aos 11. […] Odorica ia à escola de manhã e à tarde faxinava toda a casa de uma enfermeira. Aos 12, já com 5 anos de experiência, chegou a trabalhar na Mooca, mas fora despedida por conta de suas frequentes cólicas comuns à idade. O tempo passava. Arrumou emprego na Rua Oriente, próxima ao local de trabalho da irmã Maria; iam juntas. Por conta de sua já antiga habilidade com vendas, foi convidada ainda criança para trabalhar numa loja de uniformes. Aos 14, já adolescente, conseguiu uma vaga na Nitroquímica, em São Miguel. Era por lá que, na ocasião, já noutra casa, toda a família morava. É que anos antes, ciente de seus desejos, Benedita havia vendido o pequeno casebre em Minas Gerais para dar entrada noutro, nos arredores da Nitroquímica. E por ali Odorica ficara até os 17 anos, quando, após rápida passagem como vendedora de móveis, foi pentear bonecas na Estrela, a fábrica de brinquedos. Por lá se machucava e era maltratada; enfim, odiava. À época, já eram 10 anos ou mais de experiência no currículo da nem-tão-pequena garota, ali já aos 18. Chegava à maioridade. […] No todo, consolidaram-se em São Paulo. Esforçavam-se todos e não mais passavam fome; não mais viviam à custa da pequena olaria em Careaçu.

Em 1958, na tarde em que Pelé chapelou o zagueiro Julle Gustavsson e selou a vitória brasileira com o quinto gol da final contra a anfitriã Suécia, um garoto refletia no outro lado do mundo. Bastou um pensamento — o de Pedro — para reorientar os rumos de toda uma família. Mamãe, vou a São Paulo em busca de melhores condições. E isso acabou alterando a vida não somente do jovem adolescente, mas também a de sua mãe Benedita, a de Venuto, Ausenda, Maria, Zezé e a vida da nem-tão-pequena Odorica. O título mundial, por sinal, era outro: Pelé, Garrincha e Didi já tinham garantido o campeonato de 1962, no Chile.

A taça do mundo era nossa. Pela segunda vez.

O livro dos sonhos — Parte I

 

1954

 

1954. Manhã de sol, 30 de setembro. Às 6h10, o silêncio era cortado pelo som dos bem-te-vi! e por duas carroças arrastadas aos pangarés em direção à praça principal, cambaleando pela empoeirada avenida. Levavam leite. Ao longo do caminho, do alpendre dos casebres, ouvia-se também o locutor da rádio em volume baixo, numa danada chiadeira ao fundo, com sua voz empostada para todo o Brasil: este noticiário é um oferecimento de Romi-Isetta. O lado bom da vida é o lado de dentro de uma Romi-Isetta! Nas casas, o som dos talheres de café da manhã; homens e crianças ao trabalho e às aulas. A cidade acordava, era tomada pelo sol e pelo cheiro de café moído.

Ali, ao sul das Minas Gerais, morava Odorica Aureliana, uma pequena garota de família pobre e sofrida, filha de Benedita Aureliana Perantula e Pedro Bassiano. Perdera o pai precocemente anos antes, antes mesmo que pudesse conhecer melhor os detalhes históricos de sua imigração italiana; Pedro nascera em Genova. Ainda muito jovem, viu a mãe Benedita alugar uma pequena olaria — local onde se produziam tijolos com barro ou argila — para o sustento da família à custa de muito esforço. Morou num casebre com chão de terra batida, chegou a dormir enrolada em folhas de bananeira que as protegia, e mais um bando de crianças, do frio. Irmã de quase uma dezena, viu o irmão Venuto gastando todo o dinheiro da olaria com jogos e bebidas; viu a irmã Ausenda — os nomes eram italianos — trabalhando num hotel ainda criança, preparando refeições e servindo hóspedes; viu a irmã Maria trabalhando como doméstica, também bem cedo. Maria, inclusive, certa vez foi ao circo e lá aprendeu como os pirulitos eram feitos artesanalmente. Aos 6, a pequena Odorica já os vendia na rua. Olha o pirulito! Olha o pirulitô! Batia de casa em casa a vender, sempre se aproveitando do fato de que, à luz dos anos 50, naquela pequeníssima cidade, as mulheres geralmente tinham muitos filhos. Chegou a propor um trabalho em conjunto, nonde ela venderia enquanto a irmã gritava. Maria tinha vergonha. A vendedora, de fato, era a pequena Odorica. Olha o pirulito! Olha o pirulitô! […] Ali vivia.

Naquela manhã de setembro, às 6h10, ao som dos pássaros, a pequena já estava de pé a pensar no breve passado. Em frente ao espelho, olhou para si. Toda bendita manhã, buscava o leite e o pão, depois moía o café. Ainda criança, já havia deixado de vender pirulitos artesanais para cuidar de crianças e auxiliar nos afazeres domésticos; era empregada em casa de família. Tinha somente 7 anos. Preparava o desjejum diariamente, ajeitava as pequeníssimas crianças e punha-se a conversar com os adultos antes de ir à escola. Não aumente meu salário e logo saio!, bradava em voz infantil. Ganhava alguns poucos mirreis ao mês e chantageava os patrões Homero e Maria com certa frequência. Fique mais um ano conosco e, prometo, arrumarei seus dentes!, retrucava o patrão, tentando convencê-la a permanecer. Chegou a ir pr’outra casa de família, onde as crianças eram birrentas e a mordiam. Não gostava e, meses depois, voltou à casa de Homero. Aliás, era de se entender que a pequena garota continuasse a trabalhar; afinal, mesmo pobre, ela era bem alimentada pelos patrões. Às 6h55, já havia ingerido uma generosa medida de café com leite e a metade do pão sovado que lhe era oferecido; o restante, guardava para o recreio. O sinal da escola tocava pontualmente às 6h55 porque às 7h00, também pontualmente, entravam todas as crianças. De tão pequena, o alerta ecoava por toda a cidade. De tão pequena, ninguém se atrasava em Careaçu. […] Ao meio-dia a garota já estava de volta e o almoço, pronto. Comia às conchas e não raramente — aos 7! — lavava toda a louça.

Passou o tempo e a pequena chegou a cobrar a promessa do saudoso Homero. Senhor Homero, ‘óia, quando o senhor vai colocar o meu dente novo?, num sotaque tipicamente mineiro. Sem dentes novos, teve uma infância sofrida, mas feliz. Vendeu pirulitos, trabalhou em casa de família. E não há dúvidas de que também subiu em pés de jabuticaba e se esbaldou no rio que atravessava a cidade; certamente contou o dinheirinho que trazia para ajudar em casa, aprontou, apanhou da mãe e depois, com o rosto ainda sujo por uma mistura de pó e lágrimas, sorriu. Escreveu em vida uma história digna de um livro que bem mais tarde transformar-se-ia numa de suas vontades: O livro dos sonhos, com a história de sua vida. Ali, onde o silêncio era cortado diariamente pelo som dos bem-te-vi! e por carroças arrastadas aos pangarés, crescia uma mulher digna de homenagens.

Crescia Odorica.