Jéssica

 

 

Ela faz parte da família com a qual eu não me relacionava havia muito tempo. De Marialva/PR, bem próxima a Mandaguari — cidade onde nasceu meu querido pai —, chegou de ônibus com a mãe, avô e irmãs para as festanças de fim de ano. Veio para se apresentar à família paulista e sobretudo para conhecer o mar. Tchibum!, repetia. O olhar vago, os movimentos incontidos, gargalhadas guardadas aos que realmente a escutam e uma audição absolutamente incrível. Com os ouvidos, tudo: pedia ininterruptamente para que assobiássemos, buzinássemos os carros, proferíssemos onomatopeias das mais estranhas. Pedia também para que imitássemos o som irritante dos mosquitos, abelhas e marimbondos; isso sempre. Danadinha de tudo, ela gostava. Pulava, virava, repetia, conversava vagamente, batia palmas e tudo outra vez, de novo e novamente. Aprendeu a falar porra, merda e puta quando nervosa. Ah, fala aos montes. Vive sorrindo e cantando. Vive de verdade. 16 anos com carinha de 10. Adotiva, hiperativa, autista e imensamente pura: Jéssica.

Ouvi num dos dias: “Jéssica, mesmo assim, é feliz”. E o tal do mesmo assim me intrigou. Coincidência ou não, à mesma época eu lia sobre os achados de um filósofo — Erasmo de Roterdã, de 1466 —, que nos aconselhou a pensar que a ignorância ingênua é parte essencial do ser humano, sendo responsável pelo que realmente nos traz maior felicidade e contentamento. Assim, atrelada a uma condição que definiu como loucura, o autor definia a simplicidade, a ingenuidade e a humildade como as características humanas para uma vida feliz. As. (…) Brinquei, exalei cofs! sem a mínima vontade de tossir — ela pedia! —, buzinei ao longo de um percurso de 20 quilômetros somente para fazê-la rir à sua moda. E orgulhosamente confesso que me tornei um ótimo imitador do som dos marimbondos, sempre a zunir para que, eufórica, ela repetisse o pedido: Faz barulho? E eu bzzzzz! (…) Conheci Jéssica e sem sequer muito pensar já não tenho dúvida: simples, ingênua e humilde, ela é visivelmente mais feliz quando comparada aos seres humanos ditos como normais-entre-aspas.

Surpreendeu-me sobremaneira, contudo, uma posterior constatação: “Jéssica, mesmo assim, é feliz” foi dita por alguém que possivelmente não é feliz nem mesmo assim. Não é, ponto; intransitivamente. E tal infeliz não é feliz porque não sorri à sua moda, mas à moda alheia, não arregala os olhos de tanta alegria, não fala merda, porra e puta quando nervoso, nunca sentiu o que Jéssica sente ao ouvir zunidos, palmas, assobios, tchibuns!cofs! ou buzinas, não é louco o suficiente para viver a vida que sempre sonhou e, por fim, sendo assim, não é feliz. Finge e, mesmo assim, não é feliz. Não é completo.

Reencontrei parte da família com a qual eu não me relacionava havia muito tempo. Sou grato por tê-la por perto na árvore genealógica.

Jéssica, faz barulho?

 

Ernesto e as minhocas

 

 

Ainda me lembro muito bem dos traços de Ernesto. Era alto, forte, ranzinza, de poucos sorrisos e apaixonado por Luiza, com quem chegou a comemorar bodas de ouro. Tinha um Voyage azul bem cuidado, mas dirigia mal como só ele mesmo. No trânsito, entoava palavrões em voz alta mesmo nas situações em que estava absolutamente errado. Como bom jogador de truco, dizia que a vitória na primeira mão valia mais do que um caminhão de melancia. Acordava diariamente às seis para inventar algo ou caçar alguma tarefa — ainda que inútil — para fazer. Se nada encontrasse, pregava nada em lugar nenhum. Também arrumava o pomar, plantava frutas, legumes e ainda cuidava do sítio em Careaçu como se fosse dele. Pensando bem, simbolicamente era; chegou a morar ali durante meses. Se numa palavra pudéssemos defini-lo, decerto tal palavra seria pescador. Sempre à beira dos rios, pescar era uma de suas paixões e o pantanal mato-grossense, o seu destino ideal. Culpava o vento e a temperatura quando voltava sem peixes, com as mãos abanando. E ainda assim, sempre firme e otimista, não negava quaisquer convites para manhãs de pescaria com filhos, netos e amigos. (…) Ernesto foi meu inesquecível avô paterno.

Certa vez, com o intuito de minimizar os gastos com iscas e ocupar seu tempo livre com mais uma de suas obras, vovô se enfurnou na construção de um minhocário que, de tão bom, perdura até hoje. O problema: não há registros de que o mesmo tenha sido usado sequer uma vez. (…) Então, ao refletir, acabei entendendo.

Aos domingos, bem cedo, ele costumava reunir toda a família para o almoço. Preparavam uma macarronada para 30, churrasco à bancarrota e montavam algumas mesas de truco, muitas vezes com baralhos surrados de tanto manuseio. Varávamos o dia, saíamos de lá tarde da noite. E toda a família ia, além de alguns vizinhos e amigos mais próximos. A casa sempre cheia. Meus primos e eu, ainda crianças, sentávamos aos pés do sofá para assistir aos programas de TV da época — os debochados anos 90 — e também aos jogos de futebol do São Paulo Futebol Clube. Vovô, são-paulino roxo, tinha uma poltrona cativa. E dali, descalço, ele torcia. Dali, descalço, ele transformava os dedos do próprio pé em algo mágico: era praticamente uma ferramenta de guerra. Um bicho. Para uma criança, divertidíssimo.

Pasme: Ernesto conseguia beliscar com os dedos do pé. Ambos. E mais: ele também conseguia fazer com que seus movimentos, lentos, criassem uma atmosfera de suspense, expectativa. O rabo do olho de um lado e, pelo outro, os pés dele vinham vagarosamente. Eis que, quando nos mexíamos, um bote certeiro. E o beliscão era forte, sem dó. Gritávamos, criávamos mecanismos de defesa, apertávamos o pé gigante do vovô como se estivéssemos matando o bicho. Era uma guerra. Era o retrato do amor que ele tinha por seus netos. (…) Crianças, chamávamos aquele bicho de minhocão.

(…)

Talvez — prefiro acreditar — ele tenha construído o minhocário para que, agora, nós pudéssemos lembrar de tudo isso.

Saudades, Vovô.

 

Corra, Pai, corra!

Árvores ao redor, sol, uma roupa despojada e a imagem, à direita, de um homem grande a caminhar em frente, forte, fotografado de costas, cercado de boas energias por dentro e por fora: nada pode representar melhor a imagem que, desde criança, eu tenho de meu pai — Odair Girarde.

De modo quase perfeito, é como se o retrato ilustrasse a relação de exatas três décadas que temos: ele à frente; eu, seguindo seus passos. Na mente, infinitas, somente boníssimas lembranças. (…) Nunca me bateu; lembro-me vagamente só de um puxão de orelha. Não me acordava às 6 para as viagens; enrolava-me nas cobertas e me acomodava no banco de trás para que eu pudesse acordar lá. Tirou fotos minhas fazendo xixi na praia, onde vivia enrolado na toalha do São Paulo Futebol Clube. Contratava uma espécie rara (e falsa!) de He-Man — o super heroi — para animar minhas festas de aniversário. Levou-me certa vez ao gramado do Morumbi, aos 8, quando fui mascote do time são-paulino, na época com Silas, Müller e Pita. Venceu ao meu lado o primeiro campeonato de pipa do Guilherme de Almeida, fantástico colégio onde me pôs a estudar desde o primário. Explicou-me a diferença entre advogado de defesa e advogado de ataque. Assinava com a testa franzida os bilhetes que, enviados pelas professoras, noticiavam minha má conduta em sala. Atendia aos meus telefonemas chorosos, aqueles do tipo vou-contar-tudo-para-o-meu-pai. Trazia-me, todo engravatado, centenas de figurinhas e dezenas de times de botão com os quais me divertia sozinho no chão da cozinha. Comprou-me o primeiro equipamento de som depois de perder a aposta que fizera comigo — eu passaria de ano em troca da parafernalha. Esperou-me dormindo no carro enquanto, já como DJ, eu fazia a festa. Entregava-me, na adolescência, duzentos mil cruzeiros para ir à praça azarar as meninas de Careaçu, pequena cidade de onde trazíamos lambaris e mandis. Bem da verdade, meu pai sempre deixava os peixes fisgados para que eu, sentindo-me o pescador profissional, pudesse retirá-los da água com uma emoção danada. Viu-me crescer, chorar, estudar. Comprou mais de trezentos livros e apoiou-me durante todo o tempo em que, estressado e encarecando, eu estive a pastar no mercado de trabalho e durante todo o período universitário. Abraçou-me forte quando me viu de beca, formando-me em Administração de Empresas pelo Mackenzie. Assinou o contrato social de minha primeira empresa, na qual, mesmo tendo injetado 99% dos investimentos iniciais, tinha apenas 1% de participação. Pressionou-me, como bom pai, por bons resultados. Ensinou-me que ter paciência é nobre. Colocou suas leves mãos nos meus ombros quando precisei. Chorou ao meu lado quando precisávamos. (…) Por fim, criou-me sem proferir sequer mil palavras de sermão. Era simples: numa singela relação de olhar, um olho no outro, eu já havia aprendido tudo, ou melhor, ainda aprendo. Odair Girarde me adotou não somente como filho, mas sobretudo como um parceiro, um amigo para toda hora.

São lembranças de um pai que, vivo, permanece ao meu lado a comemorar seu 64º aniversário. Contaria, aqui, se num post coubesse, a história de outras milhões de boas lembranças. (…) Numa das últimas, o retrato de árvores ao redor, sol, uma roupa despojada e a figura, à direita, de Odair Girarde, meu querido pai, homem grande a caminhar sempre em frente, forte, cercado de boas energias por dentro e por fora. Um exemplo a ser, literalmente, seguido.

(…)

Corra, Pai, corra! Temos muito a viver.

A questão da hospedagem

 

"Não feche a porta!"
 
Imagine um quarto ajeitadinho. Ou nem tanto assim. Com porta, claro. Não somente alguns armários, gavetas, cama, mas bastantes coisinhas; um dormitório bem típico do jovem moderno que, embora repleto de informações, parece-me hoje analisar e refletir bem menos quando comparado ao mesmo, de mesma idade, mas das gerações passadas. Arrumado ou não, bem decorado ou não, ajeitadinho ou não, imagine também que cada um de nós temos um quarto como esse. Peculiar, particular.

Em toda verdadeira relação humana, é como se abríssemos o tal espaço para que a outra pessoa o visitasse. E conosco o mesmo; adentramos o dela. Digo relação verdadeira porque, caso não seja, a mesma fica restrita à visão da porta e, por detrás dela, onde tudo acontece, nada se vê. É somente a travessia da porta que nos possibilita enxergar segredos com os quais, numa verdadeira relação, teremos que conviver ad aeternum. Quando a porta se abre — e somente assim, atuando como visitantes — conhecemos os defeitos, as manias, os desejos e os vícios da outra pessoa. E também é só quando nos abrimos à visita que podemos expor a nossa essência. O quarto, o pós-porta: tudo que realmente somos.

Um bar agitado. O rapaz se encontra com a garota — ambos primorosamente bonitos — pela primeira vez. Trocam olhares. Ele se ajeita de modo a conquistar uns minutos de sua atenção. Então, embasbacada, ela cede. Acomodam-se à mesa, agora juntos, e pedem algo para beber. Papeiam durante uma ou duas horas. Ele não fuma; ela é viciada, mas não diz. Ele não trabalha e ainda depende do miúdo dinheiro da família. A conversa se desenrola. Chegam a rascunhar uma situação em que se beijam, mas nada. Ela se surpreende com toda a gentileza do rapaz quando por ele a porta do carro é aberta. Iam, naquele momento, para um lugar menos movimentado. E ele também se surpreende, pois — embora o fizesse única e exclusivamente para impressioná-la — nunca havia aberto a porta do carro do pai para uma mulher. Um novo rascunho e, enfim, o beijo. Supérfluo. Mal sabiam: passariam, a partir dali, a se relacionar. Casariam meses depois. E em poucos anos, então, o divórcio. A lógica. De fato, eles se entreolharam pela primeira vez atraídos pela beleza. O primeiro bate-papo fluiu como se os problemas não existissem, mas não só. Foi somente aos quarenta dias no novo apartamento que ele a viu com um cigarro pela primeira vez, mesma época em que os problemas financeiros começaram a afetar a relação. Não mais abria as portas do carro para que ela entrasse. Não mais se beijavam apaixonadamente. Abriram-se, sim, as portas através das quais, anteriormente, anos antes, não se podia enxergar a verdadeira essência de cada um. Ela era viciada, imatura e, muito embora qualificasse o marido como o mais bonito dentre os homens, não estava pronta para um relacionamento verdadeiro. No marido, coitado, ela já não enxergava nada além do que um escudo contra a sua solidão. Desleixada, não cuidava da casa, muitas vezes bagunçada como poucas. Noutro lado, ele não era tudo que dizia e, apesar de sonhar com um casamento estável e uma vida abastada, não gostava de trabalhar. Assumia não levar jeito para nada e, culpando o mundo, ele se desculpava a cada fracasso profissional. À luz da primeira impressão, nada se encaixava. Nada. Sendo assim, foi somente quando eles passaram a se hospedar, um no quarto do outro, que a verdadeira relação se aflorou. Nada de culto à beleza, fúteis papos e pseudogentilezas; na prática, até então tudo havia acontecido às portas fechadas. E boas relações não se restringem à visão frontal da porta; restringem-se, sim, àquilo que está por detrás dela.

Entre mim e você, é como se abríssemos nossos espaços íntimos para visitação. Arrumado ou não, bem decorado ou não, ajeitadinho ou não, as coisas só evoluem quando gostamos do que vemos no quarto, através das portas alheias. Ali, os vícios, as manias, os desejos e os defeitos, todos eles, são compartilhados e, sobretudo, aceitos. A hospedagem somente assim pode se dar. (…) É assim na família, com os verdadeiros amigos, com os verdadeiros amores.

Não fecha a porta, ‘tá? Pode ser? Tranquilo?

A Mãe edifica sua casa

 

 

Em frente ao seu sorriso, escrevo. Numa linda foto está ele aqui, ainda mais lindo, posto em frente ao meu computador. Um porto seguro. Um olhar de mãe como não há em outro. Você, que, de tanto sonhar, construiu um sonho por toda a vida. Realizou. E o faz desde a época em que dormia sobre folhas de bananeira até hoje, quando aos beijos nas gôndolas de Veneza. Construiu todo um mundo só seu. Edificou uma casa, uma família, um oceano de amor que existe em decorrência disso. Tudo, absolutamente tudo, porque você edificou. Sozinhos, você e seu companheiro. (…) É que, no final das contas, a mulher sábia edifica sua casa. E aqui, minha querida Mãe, quero homenageá-la por ter seguido os ditames divinos. Construiu-nos. Fez-nos ser quem somos. E aqui, em frente ao seu sorriso, escrevo. Por ti. Pelo seu dia.

Feliz Dia das Mães.