É de se pensar. Talvez o maior desafio do ser humano seja único: não se deixar levar. Digo porque, à medida que se deixa, o ser humano perde parte de sua essência (…) e longe dela, coitado, é infeliz. Longe de sua essência, bem distante, um novo mundo surge; nele, sub-obstáculos ainda mais complexos, mas sub. E estes sub-obstáculos só aparecem porque o suposto ser se deixou levar, deixou que um pouco de si fosse embora, ou todo um pedaço, por um ou outro motivo qualquer. Deixou-se. Então, a descaracterização.
Na criança, a essência. Nascemos com uma. Quando vive a infância — belle époque — , o ser humano vive também a sua essência. Na criança, todo sorriso é verdadeiro, os atos não são presos à dinâmica social. Os pequenos usam roupas íntimas — e somente elas — em locais públicos nos dias de calor; tomam banho de chuva porque refresca; lambuzam-se com o chocolate posto num copo de geleia; dizem eu te amo nas situações em que realmente sentem vontade; brincam com bambolês; não se preocupam com o que outros vão dizer enquanto dançam músicas sertanejas ou sucessos do tecnobrega; vão à escola para aprender, porque realmente querem. Enfim, experimentam o todo da verdadeira essência. (…) O adulto, por outro lado, é descaracterizado. Tudo muda. Tudo já mudou. E sua evolução num sistema repleto de aspectos descaracterizantes, fato óbvio, o descaracteriza: a família, a televisão, a escola, os falsos amigos, o dinheiro, as rígidas hierarquias, o mercado de trabalho, o status, as exigências mundanas. Suas verdadeiras características se vão e, então, embora vai também a sua essência. Os marmanjos, reflita, mesmo sedentos por fazê-lo, não se expõem ao ridículo ato de usar roupas íntimas em locais públicos num dia de calor; compram guarda-chuvas enfeitados porque — dane-se que a chuva refresca! — não podem chegar molhados no trabalho ou até mesmo em casa; o chocolate, consumido com cuidado, não mais lambuza os lábios, a toalha de mesa e a face; comumente emputecem o termo eu te amo, dizendo-o em situações de mais pura mentira; não brincam de bambolê porque, além de ser taxada de gay, tal brincadeira se faz, sob seu ponto de vista, inútil demais; deixam, assim, de curtir músicas populares porque tais obras fazem parte do cotidiano de pessoas com as quais muitos não querem se relacionar; vão às aulas em busca de notas, diploma e motivados pela exigência de um acirrado mercado de trabalho do qual precisam — por imposição do próprio sistema — fazer parte. É diferente. E como se estivessem puxando-a dos peitos, com força, arremessam a essência para bem longe. Por fim, descaracterizam-se.
À medida que evoluímos, vamos também nos atrelando às mais diversas situações e, com isso, mudamos nossas feições. Crescemos em forma física, regredimos mentalmente. Eu não tenho dúvidas de que o maior desafio do ser humano — ou um dos maiores — é não se deixar levar. Não perder, à medida do possível, a essência da criança. Lambuzar-se com o chocolate, com os sub-obstáculos da vida, brincar como se não houvesse amanhã, não levar a vida tão a sério, dançar como se ninguém estivesse assistindo e dizer eu te amo, ah! o amor!, quando o coração pedir. Porque a essência da vida não está fora de mim, de nós todos, mas bem aqui dentro.
Viva!