À noite, por volta das 22h30 de ontem, um jantar impecável com Diana. Na volta, a história. O boletim de ocorrência foi registrado por volta das 3h00 de hoje, 19/05/2011. Nele, uma das versões: a minha. Noutra parte, a versão de Manoel Missias. Com i. (…) Aqui, o protagonista.
Meados de 1967: Beatles, Rolling Stones, The Doors e Bee Gees emplacavam suas músicas no cenário mundial. The Summer of Love. No Brasil, dava-se início à Tropicália de Caetano. Sixties. Foi também em 1967 que deixamos de ser a República dos Estados Unidos do Brasil e denominamo-nos, a partir dali, República Federativa do Brasil. Éramos, para que se tenha ideia, cerca de 95 milhões de habitantes no país. E lá nos cafundós do nordeste, em 1967, saudável de pais saudáveis, nascia o menino Missias. Mais precisamente em Pernambuco, no oitavo dia do mês de agosto. Oito do oito de 1967. Manoel Missias. E o menino, ali, cresceu, mudando-se mais tarde para São Paulo. (…) Perderia a mãe, vítima de câncer, em 2003, aos 36, já em São Paulo. O pai, coitado, de tão velhinho se despediu da vida na última semana, primeira quinzena de maio de 2011. Tristes dias. Atualmente, já aos 44, Manoel Missias é um homem sofrido, pintor das paredes de nossas casas, ganha cerca de 600 reais por mês e tem uma moto, talvez o seu único patrimônio. Com la poderosa, por volta das 0h10 de hoje, voltava da casa de familiares para onde tinha ido em busca de uma cesta básica. (…) Encontrei-me com Missias, sua moto e a cesta básica. Na entrada de Guarulhos pela Fernão Dias, nosso primeiro encontro. Ali, um encontro para se esquecer (ou não).
À noite, já por volta de 0h00, eu voltava do jantar impecável com Diana. A região, uma lástima: favela empesteada de jovens usando drogas, gente paupérrima à beira de um córrego, prostituindo-se à luz gambiarrenta dos postes. Nunca amedrontado, sempre corto caminho por ali, sempre no limite de velocidade. (…) Ontem, nem tanto. Nem no limite estava. Por ali eu passava, lento, quando meu carro foi atingido por uma moto. Pareciam atordoados, ambos sem capacete: Kleberson e Manoel Missias. Missias, diz o próprio, conduzia a até-que-arrumadinha motoca. Engatei a ré, retornei 150 metros e, no chão, o garupa. Meu carro com escoriações laterais; a moto, toda desajustada. O pé de Kleberson quebrado, e o garoto sofrendo. Estávamos na fronteira entre São Paulo e Guarulhos e foram mais de cinquenta minutos até que alguém do resgate pudesse chegar; havia um impasse sobre qual cidade deveria atendê-lo. (…) Já cercado por curiosos, Kleberson foi levado. Horas depois, mal sabia, passaria por uma cirurgia. (…) Ficamos, depois de tudo, Manoel Missias, seu amigo Téo e eu. Procurávamos uma solução para o saneamento dos bens materiais. (…) Bem da verdade, eu fui bastante ingênuo: o local era perigosíssimo; Missias, paupérrimo. Prova disso é que o mesmo estava triste pela moto, mas não só; pedia encarecidamente para que guardassem a cesta básica que havia conseguido naquela noite. (…) Depois, com a chegada de uma viatura da polícia, as coisas começaram a fazer sentido. Acabamos numa delegacia no Jaçanã, tradicional bairro de São Paulo, e o relógio já mostrava 3h30. Ali, pensando bem, entendi.
44 anos depois, conhecemo-nos Missias e eu. Ele me elogiou. Disse-me que era um rapaz educado. Chorou quando falou da recente morte do pai. Enquanto esperávamos pelo aval dos policiais, Missias narrou sua história desde a época em que chegou em São Paulo. Desabafava. Parecia-me precisar de alguém que o pudesse ouvir. Por um momento, visivelmente faminto, decerto pensou em me pedir algo (ao invés de pagar pelos danos do meu carro). A essa altura, nem mais pensava nisso. A essa altura, já às 4h00, eu refletia sobre aquele rapaz e sobre a realidade que o assolava 44 depois de seu nascimento, em 1967. Era órfão, infeliz, faminto e precisava de alguém. Manoel Missias chorou. Eu havia entendido o meu papel. (…) Precisava apoiar a mão no ombro de alguém que, há 10 dias, perdera o pai. Precisava viver mais um choque de realidade para entender o sentido de minha própria vida. Precisava valorizar os meus pés, que nunca sofreram sequer uma fratura. De repente porque ninguém o tinha feito, eu precisava ouvir o desabafo de Missias, que desabafar tanto precisava. Precisava informá-lo também de que a vida continua. E, dali em diante, continuaria. (…) Então, ele pôs as sujas mãos nos olhos e novamente enxugou as lágrimas.
Missias ainda não sabe, mas não vou cobrá-lo pelos danos no meu carro. Melhor que abasteça sua geladeira com o mesmo dinheiro. Vou tê-lo, sim, como mais uma lição de vida. Missias certamente não teve oportunidade de, numa família paupérrima de Pernambuco, curtir Beatles e Bee Gees. Talvez nem tenha se deparado com uma TV em cores tão cedo. É um retrato vivo com o qual alguns de nós nunca nos depararemos na vida; um ser humano que bem ilustra as condições lamentáveis em que muitos vivem: fome, sofrimento e descaso. (…) Que Missias tenha sorte, que prospere e que seja orgulhoso dos pais que, um dia, orgulhosamente o tiveram em 1967. (…) Continuarei a levar a minha vida, mas nunca me esquecerei da história contada por mais esta noite.
Deus o abençoe, Manoel Missias.