Caverna do Dragão

 

 

Embora, por pura preguiça, eu não consiga comprovar cientificamente, já não tenho dúvidas de que nossa mente flutua; não no ar, mas em dimensões, várias delas. Estou certo, inclusive, de que tais dimensões  são criadas e mantidas a partir da organização das centenas de percepções que temos sobre as coisas da vida — da crença em Deus, por exemplo, ao medo da mariposa negra, da percepção sobre o que é felicidade à decisão de dormir cedo ou tarde numa noite qualquer. Nosso corpo, portanto, é somente o reflexo das experiências que vivenciamos nas tais dimensões; somente reage às decisões que sozinhos tomamos, às percepções que temos guardadas nas diversas repartições encaixotadas por detrás dos olhos.

Hoje, segunda-feira, estou doente. Ontem estive, anteontem também, tanto ao ponto de não conseguir dormir e sobreviver às custas de comprimidos amargos, um punhado deles. Uma gripe forte, daquelas que, justamente por serem fortes, não se revelam com tanta frequência. Reflexo. É que, digo, a dimensão na qual vivo atualmente não é das mais brandas, e o meu corpo, provavelmente indisposto, talvez esteja simplesmente refletindo tal indisposição. […] Hoje, vivo numa dimensão em que a plena felicidade é tão utópica que beira o impossível. Indisposição. Nela, as pessoas são iguais, as tribos são iguais, os atos são iguais e o povo vive em crise; uma crise de identidade, de otimismo e benevolência fakes. Não que o ser-igual seja ruim, muito menos as terras em crise. É que, no fim das contas, hoje tudo é meio falso, fake. É um flood de mensagens otimistas sobre o amor, sobre o futuro, sobre a superação, o transpor-obstáculos e o arco-íris do existir. É o prostituir o Santo Nome em vão, ou pior, em imagens no Facebook. É o protocolo exagerado na relação entre pessoas e que as tornam supérfluas o suficiente para levar à discussão destrutiva quaisquer afirmações além-protocolo. É o pobre que se endivida para parecer mais rico; é o rico que desdenha ou se submete a situações ridículas e de extrema humildade para se parecer com o ainda mais rico ou bonito, que seja. São os óculos de Herchcovitch na face de quem não o teria; a foto com o cabelo bonito porque, depois do banho ou da repentina chuva, ela sequer tiraria. É o abrir a porta do carro e levar a um restaurante dos bons porque lá no fundo, bem no fundo, ao invés do romantismo pelo romantismo, este raro nos nossos tempos, talvez ela ceda às tentativas de coito ao fim da noite. É o corpo sarado e o erotismo que conquistam; afinal, diria o ditado já popular: amor que fica é o desse tipo. Amor pra quê? E não me cabe falar aqui, por falta de espaço ou precaução, dos quarentões twitteiros às margens de uma crise ainda maior — a do arrependimento por tanto tempo perdido com os milhares e milhares de tweets mais infantis que o desenho do Pingu — ou dos pré-candidatos que se aviltam em troca de votos. […] E esta é, por tudo e muito mais, uma dimensão de merda; é, infelizmente, a dimensão na qual vivo.

Nossa mente flutua. Somos, sabe-se lá como, o reflexo de nossas percepções. E nas dimensões que nós mesmos criamos, vivemos. A dimensão na qual vivo, eu disse, é podre, cheira a enxofre e está em crise. Adoeceu-me, inclusive, nos últimos dias. Daqui, meus caros, quero sair, mas daqui, porém, não vejo a luz no fim do túnel. Daqui não vejo a saída sequer por aquela famigerada fenda — decerto porque nunca se pôs como saída, de fato — a ruir entre as pedras gigantes depois de um abalo císmico. […] Estou aberto às dicas.

Por onde andas, Mestre dos Magos?

Da minha nuvem

 

 

A nuvem nonde vivo foi feita para mim: carregada e chuventa, é do tipo que não agrada a ninguém quando desponta no céu. Alta, meio cinza, meio branca. Nimbus. B612 2.0. Daqui vejo um mundo carregado, frio, desorganizado, gerido por um software capenga e abastecido com combustível à base de frustrações dos mais diversos tipos. Um mundo nonde os seres humanos vivem de expectativas, de crise, de aprendizados que não se findam. Daqui — bem uns 12km de altura — é possível enxergar o quanto os valores terrenos foram alterados de tempos para cá; porque, como dizem por aquelas terras, a evolução, digo a entre-aspas, permite mudanças quaisquer ao longo do tempo, ainda que para pior. E de tempos cá, de repente em função de tal permissão, a nuvem nonde vivo passou a se precipitar mais, a ficar ainda mais pesada. Ela chove forte, raja ventos, estremece o chão por onde passa; e o faz não para auxiliar, mas decerto para que os seres humanos — aqueles que vivem de expectativas e de aprendizados que não se findam — se atolem ainda mais à frente das telas de computador, deixando de lado as mãos dadas e o olhar tête-à-tête para digitar, por ali mesmo, via teclado, “como ser feliz” no Google e clicar, logo em seguida, via mouse, o botão Estou com sorte! Talvez assim aprendam, de fato. E daqui, sem aguaceiros, rajadas de vento forte e bem longe das alterações climático-psicológicas que assolam a atmosfera, as porções de terra e os seres humanos, posso lhes dizer que vivo bem. Cético em relação ao mundo, confesso, mas bem. […] A nuvem nonde vivo foi feita para mim e daqui, escrevendo, cabe justamente a mim agradecer por sua gasosa existência. Agradeço, afinal, porque daqui posso crer que amor à moda antiga vai bem, mesmo em nossos dias. Daqui sou livre para ser romântico sem elevar ao céu — se é que nele já não estou — o título de piegas. Da nuvem nonde vivo posso culpar a nova mulher — evoluída ou não — pela pobre e perecível configuração das atuais relações amorosas. Daqui, sem receio, posso acreditar que a esposa dos meus sonhos é linda e está viva a caminhar por aí. Os sonhos, inclusive, são liberados por aqui, nonde sonhar, comer, rezar e amar não são atos utópicos. Daqui podemos crer que algo incrivelmente inesperado ainda alterará o software, as configurações e os rumos do mundo. Format, cê, dois pontos. Porque aqui, já fechando a conta, somos quase etéreos sob a ótica dos mais terrenos; somos quase utópicos; nefilibatas mesmo. E aqui, sim, quase tudo podemos. Pois sobre a nuvem nonde vivo somos construídos dia após dia, sem culpa, a partir de nossos sonhos. E por aqui isso não é ruim.

Bom que seja assim.

Persona non grata

 

 

3 horas da manhã, madrugada de segunda-feira. Sem ninguém por perto, sequer o pirríu do guardinha, o rapaz sobe num poste ainda sonolento e, dali, 4 metros de altura e correndo grande risco de se esturricar no chão, estica um fio que se conecta ilegalmente a um adaptador dependurado sobre o telhado de sua casa. Plim! Plim! Agora a família tem TV a cabo à vontade para todos os aparelhos de TV da casa. E o melhor: com todos os canais, inclusive os adultos, sem custo algum. Com tudo em riba, tomou um banho e aproveitou para sair mais cedo, uma vez que o trânsito nas cidades se dá em função da quantidade de automóveis que saem juntos de casa, na mesmíssima hora, e não necessariamente em função da falta de infraestrutura viária. Às 5h00, ainda sob a luz da lua, mas já em direção à faculdade, o jovem universitário, futuro filósofo, depara-se com uma blitz. Passa um carro, passa outro, a visão é ofuscada por um feixe de luz que sai da lanterna de um policial, que o manda parar. Putz! O jovem não pagou o IPVA e, por conta disso, não conseguiu licenciar o carro. Mas a gente dá um jeito. Conversa vai, conversa vem e, dez minutinhos depois, o policial quer liberá-lo; afinal, não era exatamente um rapaz sem lenço e sem documentos o quê ele procurava por ali. Você me ajuda que eu te ajudo! Então, bastaram 50$ — uma onça — para que pudesse sair dali impune. Vamos, enfim, aos estudos. À frente, uma motocicleta ultrapassa o farol vermelho como se, somente por ser da polícia, pudesse fazê-lo. Sobre o banco do carro do jovem, já em movimento, o jornal do dia alertava a população: o prefeito nada faz pela educação na cidade. Mas faz. A verdade é que o jornal — pouca gente sabe — tem fortes ligações com o candidato da oposição e obriga-se, por receber mensalidades do partido, a banhar a mente da população com notícias fedorentas sobre o partido que detém o poder. Coisas que o dinheiro faz. Às 7h20, os amigos da sala já estão reunidos na padaria. Um na chapa e um pingado! Na TV sobre a geladeira de refrigerantes da Pepsi — e somente Pepsi —, o noticiário da manhã, para todo Brasil, mostra a figura de um político. Desviou 5 milhões dos cofres públicos! Oh! Que vergonha! Virou assunto. Então, num papo que se estendeu à sala de aula, os jovens filósofos passaram a clamar por justiça.

Sempre atribuo ao povo a culpa pela atual condição política brasileira. O povo tem o que merece, o povo tem o que põe na urna. Decerto pode haver manipulação nos resultados das eleições, mas, exceto por essa suposta condição, temos nas câmaras e nas cadeiras de prefeitos, governadores e no poder executivo federal um bando de gente posta lá pelo povo. É gente do povo, como se diz, que representa exatamente o que queremos na hora em que votamos. […] Na prática, creio que a mudança está no povo, não nos políticos. Porque enquanto darmos o gato em tudo, no maior estilo jeitinho-brasileiro-de-ser, vamos seguir assim. Enquanto passarmos no farol vermelho enquanto ninguém vê, continuaremos assim. Enquanto subornarmos o guarda de trânsito, assim. Enquanto sonegarmos impostos, assim seremos. Enquanto agirmos injustamente em troca de favores e dinheiro, diria Chaves, tampouco. Enquanto, assim sendo, votarmos, assim seremos. […] Porque — eu realmente acredito — aqueles que nos representam nada mais são do que um reflexo do que somos como povo brasileiro. E como povo brasileiro, convenhamos, somos espertinhos, desobedientes, malandros, malcriados e bastante preguiçosos.

Sanear a corrupção começa conosco. Sanear a corrupção começa no voto, começa na cabeça de um povo. […] Patriotismo puro, aquele do verdadeiro amor pela bandeira: é nisso que acredito.

Brasil-sil!

Nem Chapolin

 

 

Um indivíduo pode ter grave doença ou ser atropelado por um carro em alta velocidade e, assim, será a vítima. Ok. Outro pode se colocar como vítima sem mesmo sofrer, de fato, algo que o pudesse classificá-lo como tal. Entre um e outro, gritante diferença. Aqui, excluamos da reflexão as vítimas de fato, tais como as que sofreram algum mal súbito ou acidente automotivo. Consideremos somente aquelas que, por uma ou outra infundada razão, classificam-se como vítimas de direito, ou seja, pessoas que se [auto]posicionam — porque creem que têm direito — como vítimas da vida, das coisas, das condições, dos outros. Reflitamos somente sobre o fraco tipo de pessoa que atribui o próprio desempenho na busca pela plenitude à ação de outras coisas e pessoas sobre ela — não a uma ação dela própria sobre outras coisas e pessoas —, permitindo que o impacto do ambiente externo na vida seja mais forte do que o impacto de suas próprias decisões. […] Em suma, vítimas de direito são pessoas caracterizadas por relações de dependência quase doentia e, sobretudo, por um injusto sentimento de justiça atrelada a uma não-culpa. É a sofrida gente que se faz de vítima.

Abro citação. As pessoas estão tão diferentes atualmente que, sentindo-me só, raramente me interesso por alguém. Sofro porque meus amigos não aprendem o que a vida tem a nos ensinar. Eu sou bastante humilde, faço as coisas da melhor forma, mas certas pessoas não fazem o mesmo e isso não está correto. Minhas sofridas condições psicológicas existem em função da má relação que meu chefe — geralmente muito agressivo — tem comigo. Não me dou bem com parte de minha família porque muitos ali não me entendem. Resolvi me isolar porque não creio que exista amizade verdadeira ou mesmo o amor verdadeiro no mundo. Tenho vontade de chorar quando percebo que as coisas, antes muito bacanas, mudaram tanto — e para pior. Prefiro sofrer calado a falar o que realmente desejo falar. Aliás, pensando bem, pouca gente ouve o que eu tenho para falar. Trabalho muito, esforço-me além da conta e sou pouco reconhecido. Nem meus finais de semana são bons o suficiente. Ninguém me ama, ninguém me quer. Não fecho citação. […] E o jogo da vitimização segue infinitamente às frases mais surpreendentes, assim como surpreendente é o fato de não haver [auto]culpa nisso tudo sob a ótica da tal vítima.

Há, inclusive, o que parece ser um processo lógico traçado por vítimas de direito para resolver o problema da culpa. Num primeiro momento, entoada sob diversas formas — ou até postada na internet —, coitadinho de mim! é a frase  mais comumente utilizada nas situações em que o apoio é necessário. Então, os entes mais próximos [por vezes outras vítimas de direito] sentem e passam a apoiar mais por uma espécie alternativa de responsabilidade social do que por vontade verdadeira. A vida passa a duras penas, a vítima de direito é vista como vítima de fato e então, quando percebe o apoio de outras pessoas, deixa que o sentimento de culpa vá embora por pura conveniência. Ali, é como se todo o contexto desfavorável se transformasse numa decorrência natural do comportamento ou ato de outro, não do próprio ato ou comportamento. Ufa, a culpa não é minha! Sou vítima!

Sob meu ponto de vista, a culpa pelo fracasso ou sucesso é sempre de quem o vive, não de outro. A vítima de direito fez algo ou colocou-se propositalmente ali, fraca, a reclamar da situação construída por si mesma porque quis, porque não foi capaz ou por outra porcaria qualquer que tenha feito. É como se não conseguisse se [auto]explicar ou realizar o suficiente e, sob pressão, pusesse noutro ser humano ou coisa a culpa pelos próprios infortúnios e fracassos. Oh! E agora quem poderá me defender? Pois quem poderá defendê-la de tamanha injustiça e tamanho sofrimento é VOCÊ, dona vítima, e mais ninguém! Ou, de repente, somente para que a história se eleve ao tom do humor, chamemos o Chapolin Colorado, que tal? Aí sim, quem poderá lhe defender?

Eu!

Sobre a hipocrisia

 

 

Fingir que é, mas não ser. Ser essencialmente feio — no amplo sentido do termo —, mas colocar-se à frente como se as próprias ações e os aspectos físicos fossem belos o suficiente, tão belos!, ao ponto da própria imagem beirar a perfeição. Uma espécie não-rara de idealismo que permeia as relações de hoje; uma reviravolta na forma, o que não é em é — a hipocrisia.

Hipócrita é o tipo que, mesmo após um banho quente de 45 minutos, defende o uso de sacolinhas plásticas biodegradáveis porque o meio ambiente está em colapso. O tipo que cultua culturas alternativas porque se diz multicultural, cult e [?] não gosta de ler. É o tipo que se mostra responsável socialmente, mas que, voluntariamente, nada faz ou já fez em favor de outro. É o tipo que brada contra a corrupção, mas está disposto a negociar com um policial rodoviário no caso em que não estiver com a documentação do carro em dia. Critica Justin Bieber, mas canta Baby numa boa. O tipo que não vive dias ruins, que nunca frequenta lugares ruins e está sempre sorrindo, em bons lençois. É a garota que, essencialmente piriguete, critica as piri-piri-piriguetes assumidas. Ou mesmo o garoto que, fundamentalmente macho, nega o seu lado sensível. É o tipo que se diz patriota, regionalista, e vive a elogiar os states ao mesmo tempo em que critica aos punhados a terra-mãe. O quase-homem que, por um ou outro interesse, diz o que não diria ou é o que essencialmente não seria. O tipo que defende o seja-você-mesmo e, bem lá no fundo, nunca foi si próprio. Preconiza o trabalho, trabalha pouco; diz-se rico, ganha pouco; compartilha o amor, não ama; diz curtir o amigo, não gosta. Sorri amarelamente e apoia, muito a contragosto, uma ideia que não apoiaria. Acena e aperta a mão em função do protocolo, pois a cabeça noutro lugar, noutro assunto, não se atenta à pessoa. É o tipo que tenta viver de acordo com os princípios da moralidade social ainda que, na essência, seja um indivíduo imoral, libertino e desonesto. É não possuir, mas fingir que possui; não crer, mas fingir que crê; não sentir, mas fingir que sente; atuar, ‘malemá, no pior sentido do verbo. Hipócrita é o tipo que, como já diziam, “oculta a realidade atrás de uma máscara de aparência”; uma espécie não-rara de gente que faz do mundo, pobre mundo, um lugar um pouquinho mais mentiroso, oco, complicado de se viver.

Certa vez, lá pelas tantas de 1500, Montaigne usou uma figura ligada à justiça para ilustrar a hipocrisia. Escreveu que até um juiz seria capaz de rasgar um pedaço de papel para enviar um bilhete amoroso à mulher de um colega, danadinho, da mesma folha onde acabara de escrever a sentença de condenação de um adultério. E é isso que, no presente, vemos por aí: no que se expõe, um mundo de beleza, amor, fraternidade e solidariedade; na vida real, por outro lado, um bando de piriguetes, homens sensíveis, pessoas carentes, malandras, corruptas, pseudo-cults, malemolentes, boêmias, contas-no-vermelho, sorrisos-colgate e egoístas a vagar pelas ruas, pela internet, jogando latinhas de cerveja e bitucas de cigarro pela janelinha, postando fotos e textos como se seus perfis fossem ideais e o dia-a-dia estivesse às mil maravilhas. Ahvá.

Montaigne dizia ainda que comumente nos são sugeridos modelos de vida que sequer quem os propõe — tampouco seus auditores — têm esperança de seguir ou, pior, o desejo de os realizar. Por fim, citando-o quase que literalmente, “deixemos, sendo assim, que as leis e os preceitos sigam o seu caminho: nós tomamos outro, não só por desregramento de costumes, mas também frequentemente por termos opiniões e juízos que lhes são contrários“. Os ditames sociais supérfluos de um lado, nós do outro.

Tiremos as máscaras.