Bocós na crista da onda

 

 

Aqui, em novembro de 2010, eu escrevia sobre a máxima de que o mundo é o que a gente enxerga. Em decorrência disso, imaginemos, frequentemente tomamos decisões como se a percepção dos outros fosse espelhada na nossa, exatamente à mesma forma. Óbvio — muito óbvio! — : não é. Muitas de nossas escolhas são provenientes de uma percepção peculiar acerca do fato em questão, ou melhor, são geralmente frutos daquilo que se percebe como legal e justo. Cada um pensa dentro de seu quadrado, cada qual com seu próprio umbigo. (…) Nesse contexto, uma nova regra passou a surgir: tudo que se posiciona em mainstream — a corrente em voga, a tendência atual — não é mais permitido. Enfim, posso ter uma boa imagem, ser bem-sucedido E ouvir Justin Bieber?

Parece-me que, na ânsia por se diferenciar de modo rápido e mentiroso, um bando de indivíduos naturalmente medíocres e inseguros outorgaram uma pseudo-lei essencialmente infeliz: para viver na crista da onda, identificar-se com algo popular é terminantemente proibido. Ser bem visto, portanto, é condição que impede o contribuinte de assistir ao Big Brother Brasil, ir aos jogos de futebol nos finais de semana, ouvir sucessos do pagode ou até mesmo comparecer ao encontro anual do sindicato brasileiro de nerds do tipo quero-ser-Zuckerberg. Afinal, nada que é pop pode. Assistir novela, por exemplo, passou a ser evento para quem quer destruir a própria vida, bem como fazer qualquer coisa que não seja curtir música erudita, ler livros dificílimos, entender um pouco sobre cultura científico-imbecil, curtir um sistema operacional incomum ou desdenhar mainstreamers utilizando-se de palavras e jargões intraduzíveis.

Hoje, numa linda tarde de sábado, minhas sobrinhas e mãe foram ao cinema assistir ao Never Say Never, protagonizado por Justin Bieber. Afinal, elas podem. Mas e se EU fosse ao cinema para curtir o filme estrelado pelo jovem cantor com voz típica de quem acabou de sair da puberdade? Pois então diriam que sou gay, tenho a consciência de um jovem imaturo e perco o meu precioso tempo com inutilidades. Elas, sim, podem. E estou certo de que podem porque, na visão do tal bando que outorgou a pseudo-lei, minhas lindas mulheres são inofensivas. Mamãe tem 63 anos; Nicole e Marina, respectivamente 8 e 4. (…) Há, na verdade, sob a ótica desses indivíduos naturalmente medíocres, uma preocupação além-conta com a vida alheia, principalmente quando esta demonstra estar de bem com o mundo, em paz. No fundo, até entendo: vidas bem vividas são invejáveis e instigantes.

(…)

Eu prefiro Justin Bieber ao Paul McCartney. Amo música eletrônica. Gosto de futebol e grito alto quando meu time vence o arquirrival. Sou sensível ao ponto de chorar vendo propaganda. Adoro o seriado Chaves. Não me interesso por muitos dos livros da literatura nacional. Enjoam-me as músicas clássicas quando reproduzidas por mais de 15 minutos. Não frequento pubs. Não sou programador. Beirando os 30, gosto de videogame e joguinhos viciantes da internet. Minha rádio preferida é a Jovem Pan FM. CQC e Pânico na TV são bons. Exceto nos divertidos períodos que antecedem as eleições, pouco ligo para a política. Identifico-me com atitudes românticas. Uso AllStar em ambientes corporativos. Leio o caderno de esportes antes dos outros. Não sou fluente em história ou economia contemporânea. Curtia o Programa do Ratinho e nunca terminei de assistir a sequer uma edição do Café Filosófico. Não entendo algumas das ideias de Karl Marx. Já comprei CD da Shakira.

(…)

Afinal, sou idiota?

Viva!

Fim da era bairrista

 

 

Imagine todo o mundo. Os mares, as campinas, as montanhas e as calotas polares. Todo ele. Com suas cidades, pessoas, as músicas e os anseios. Os celulares, os carros, as árvores e suas confusões. Frutas, desertos, livros e suas ditas maravilhas. Fusos horários. O mundo. Terra. (…) Pode parecer incrível, mas talvez essa seja a forma mais inusitada de enxergá-lo. A mais rara. De repente porque aprendemos a vê-lo de modo segmentado. E o mundo, assim, passa a ser a realidade na qual vivemos, o mundo que vemos. Enxergamos o que está à frente de nossos olhos e, pumba!, cremos com veemência que o mundo está ali. Inteiro. Só aquilo. (…) Engano. Não está.

O Aurélio, utensílio essencial aos casebres que prezam pelo respeito à língua e à cultura, define a palavra bairrista de modo bastante peculiar. Diz que o termo representa o tipo de “pessoa que, levada por uma visão estreita do patriotismo, só considera como sua pátria o estado natal e hostiliza ou menospreza tudo quanto se refere aos demais”. Ah, entendi: uma versão burra do patriota. (…) Seria algo como outorgar ao animal no qual lhe enfiam uma espécie de focinheira — ferramenta que o impede de olhar para a completude do mundo, coitado — o título de bairrista. Porque o bairrista é assim: enxerga o mundo como lhe é conveniente, fingindo, forçando-se ou sendo forçado para que não se deslumbre com os espetáculos do mundo. O mundo inteiro.

É como o jovem que descarta as alternativas que seu talento pictórico lhe dá e tende a enxergar o futuro sob a egoísta ótica de seus pais — digo nos casos em que ambos torcem fanaticamente para que o tal seja médico, por exemplo, ao invés de designer. É como a mulher apaixonada que, ingênua e iludida, aguarda cheia de esperanças por seu príncipe encantado quando, na verdade, o tal príncipe já está ali, bem perto, mas escondido por detrás da grossa porta da masmorra. É como o infeliz que não crê na felicidade, mas não se esforça para compreender que a tal não existe simplesmente porque, para ele, as fronteiras de seu próprio bairrismo se tornaram intransponíveis, altas demais. É como aquela famosa mulher que, linda, incrível, desfilando num vestidinho preto indefectível, vive fechada em seu mundo. (…) Ahh! ‘Pra mim, chega.

(…)

Declaro, aqui, o fim de minha era bairrista.

Se é para o bem de todos e felicidade geral da nação — não do bairro — , estou pronto! Digo a quem possa se interessar que, a partir de hoje, deixei de ser bairrista. Dotado de uma outra visão, agora mais completa, quero ver mares, campinas, montanhas, cidades, pessoas, músicas, livros e as maravilhas do mundo de uma forma distinta. Tudo além, sem fronteiras. O mundo todo à vista. (…) Então, enfim, um novo mundo, novos aromas, novos amores.

Tudo novo de novo.

A conta da sua vida

 

 

Se pudéssemos precificar, quanto custaria uma hora de sua vida? Você a venderia a outro por um preço módico? E se levássemos em conta as horas em que fica dormindo, assistindo aos programas da televisão, divertindo-se com seus familiares ou em horários de lazer? Quanto valeria tudo isso? De tempos para cá, muitos estudos sobre o modo por meio do qual as pessoas alocam o tempo de suas vidas vêm sendo realizados. Analisemos. Reflitamos.

Um dos artigos mais completos que encontrei sobre o tema foi escrito em Chicago no ano em que nasci — 1981 — com o título The Use of Time: An Integrated Conceptual Model. Nele, os autores Laurence Feldman e Jacob Hornik afirmam que a natureza finita do tempo requer, necessariamente, que o indivíduo faça boas escolhas conforme sua percepção de utilidade. Resumindo: o tempo é curto e a vida, danadinha, desenhada pelas escolhas que fazemos. Essas escolhas, por sinal, dizem esses caras, podem ser classificadas em dois grupos: o grupo de trabalho (work) e o outro, oposto, sem tradução literal, de não-trabalho (nonwork). O primeiro grupo — de trabalho — possui uma atividade somente: o emprego. Já o segundo, três atividades: (1) as necessidades, (2) o trabalho que se faz em casa e o (3) lazer.

O emprego é o tempo pago, geralmente por outros, capaz de fazer com que o indivíduo abasteça sua casa, tenha dinheiro para sair com amigos, compre presentes de Natal ou aquelas tralhas que enfia no apartamento, por sinal também comprado com o tal dindim. É a prata, a moeda de troca. (…) As necessidades, tais como comer, dormir, etc…, são atividades constantes de auto-manutenção. Aliás, como não poderia deixar de ser, o tempo gasto em atividades desse tipo são relativamente constantes; afinal, não se espera que alguém fique muito tempo sem almoçar, sem cair no sono ou ir ao banheiro, não é mesmo? (…) O homework — ou melhor, o trabalho feito em casa — pode (ou não) ser remunerado e rouba um tempinho. É aquele no qual o indivíduo trabalha porque se sente obrigado (como acontece quando leva o resíduo de tarefas não-cumpridas do emprego ou da faculdade para casa) ou porque vê nele uma alternativa financeira ao emprego (como acontece no caso da professora que, mal remunerada, enrola coxinhas em casa e vende às centenas). (…) Por fim, o lazer — tempo destinado ao entretenimento em que o indivíduo está livre de compromissos e/ou responsabilidades. É, na verdade, o momento mais esperado por muitos, geralmente destinado aos passeios no shoppings, ao sol da praia, à TV ou ao consumo de final de semana.

Agora, façamos a conta.

Imaginemos um ser humano comum, habitante de São Paulo: 8 horas de sono (necessidades), mais 8 horinhas no trabalho (emprego) e, por fim, 8 livres (lazer ou homework). 1/3 para cada bloco. (…) Bom, imaginemos também que esse indivíduo — comum — esteja há 10km do trabalho e, prejudicado pelo trânsito, demore 30 minutos para ir, mais 30 para voltar. 1 hora. E, sendo assim, como não pode excluir 1 hora do bloco emprego, vai infeliz a diminuir 1 hora de seu tempo livre OU de seu sono. O emprego, nesse caso, ganharia uma hora.

Na nova conta — e levando em consideração que a hora no trânsito tenha sido supostamente alocada no bloco de tempo livre — , teríamos um indivíduo com 9 horas destinadas ao emprego, 7 horas livres e 8 horinhas para as necessidades básicas. (…) Mas e a HORA do almoço no trampo? E aquela outra horinha destinada ao banho, às vestimentas, ao café da manhã e, no caso das mulheres, à maquiagem? Muito embora estejam, na prática, relacionadas ao bloco de necessidades, todas essas atividades estão voltadas exclusivamente ao emprego. É como se existisse — e existe! — uma espécie de ritual de preparação para o trabalho. Mais 2 horas para ele.

Na prática, de segunda a sexta-feira, 12 horas da vida são destinadas ao trabalho. Metade de todo um dia. E aí, se pensarmos que uma semana tem 168 horas,  estamos falando de 36%, ou seja, mais de um terço de TODO o tempo de uma semana destinada ao emprego. 60 horas. Então somamos a isso as 7 horas, em média, de sono diário — mais 29% vão embora! — e temos 65% do tempo total. Resumindo: dos 365 dias de um ano, aproximadamente 234 são destinados exclusivamente ao emprego e ao sono. Quase 8 meses!

Ah, e supondo ainda que o indivíduo não esteja tão satisfeito com seu emprego, seria como se vendesse 8 meses de todo um ano (ou pior, 2/3 da vida) para alguém, para uma empresa, e ainda assim não fosse feliz. O pior: tem gente que se aposenta nessa vidinha. #VDM É TODA UMA HISTÓRIA!

(…)

Quanto custa uma de suas horas? Você a vende por um preço módico?
Reflita. Faça as contas.

amor de Passarinho

Prometo ser fiel na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, amando-lhe e respeitando-lhe até que a morte nos separe. Pá! Pá! Pá!

Falar de amor enjoa, enoja às vezes. Às vezes, confesso, falar de amor é como acreditar na maior, seja lá qual for, utopia dos tempos. O amor, digo o vivido hoje, em letra minúscula, enobrece o ego ao invés do matrimônio, a beleza do corpo nu ao invés da beleza da alma, a bonança eterna ao invés do eterno felizes para sempre. É um amor falso. Fake. (…) Falar de amor, sendo assim, é motivo para chacotas corpulentas e, ainda que saia por acaso, é geralmente voz de fora para dentro, não mais de dentro para fora. E quando felizmente é de dentro para fora, reitero, vira motivo de chacota. Então, triste, o antes-crente passa a afogar a humilhação do tentar amar inebriando-se em festas do beija-beija, no te amo a preço de banana, em traição da própria consciência e nos infundados discursos — e somente discursos — de boa família e amor eterno, na saúde ou na doença. Mentira. Excetos em raros casos, hoje só o amor da arara é assim. (…) E todo esse vazio do existir nos faz esquecer que, ainda que falássemos as línguas de homens e anjos, tivéssemos toda a fé e o dom da profecia, que conhecêssemos todos os mistérios e toda a ciência, sem o Amor nada seríamos. Nada somos. Faz-nos esquecer também que, ainda que distribuíssemos toda nossa fortuna para sustento dos pobres e entregássemos nossos corpos para uma churrascada de canibais, sem o verdadeiro Amor, nadinha. (…) E quer saber? O Amor verdadeiro é paciente, é benigno; o Amor não é invejoso, não trata com leviandade, não se ensoberbece, não se porta com indecência, não busca os seus interesses, não se irrita, não suspeita mal, não folga com a injustiça, mas folga com a verdade. Tudo tolera, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. O Amor nunca falha. (…) Somos nós, minha gente, que deixamos de viver o verdadeiro.

Eu acredito no Amor.

A verdade sobre a Verdade

Vdd

A verdade é instável. Esteja ou não em contexto de valor, ela não existe num só ponto. Bem, pensando bem, talvez a única verdade pura seja a verdade pura não existe. Entender a verdade, portanto, exige que entendamos também alguns outros aspectos que a envolvem: quando no papel de antônimo da mentira, precisamos entender a conveniência; já quando no papel de uma suposta verdade pura, a diversidade de percepções.

Aí, fato infelizmente comum, eis que um crime brutal mais uma vez serve de exemplo. Hoje, em Salvador, após discutir feio com a mulher, um homem atirou a sobrinha de dez anos contra um ônibus que passava pela rua. Coitadinha, a pequena menina morreu. Já o criminoso, visivelmente embriagado, disse à polícia que não se lembrava do que fez. ‘Hm, daí o entendimento da conveniência. (…) E digo pois é claramente conveniente, safado, principalmente quando se pensa sob a condição de quem está prestes a apodrecer na cadeia, dizer aos outros que não se lembra da verdade, não é mesmo? Ah, e por que não criar uma nova verdade? Subjulga-se, assim, um novo fato, o dito atropelamento é sobreposto pela embriaguez do caboclo e, exceto no raro caso em que tal brutalidade é flagrada por câmeras ou testemunhas realmente imparciais, o acontecimento translucida, torna-se embaçado aos olhos de quem tenta enxergar a pura verdade, e, por fim, sucumbe. Filho de uma rapariga. (…) Maridos infiéis, profissionais de fachada, invejosos enrustidos e puxa-sacos são somente alguns exemplos de pessoas que se utilizam da conveniência para mascarar e minimizar os impactos negativos dos verdadeiros fatos e sentimentos. Esconde-se a verdade à sombra da conveniência, o que descaracteriza a pura verdade e a desestabiliza. Vivem dessa instabilidade, por sinal, os advogados.

Mas tal instabilidade da verdade não é atribuída somente à conveniência. Entender a verdade também depende do entendimento dos diversos pontos de vista possíveis e que se referem a ela. O bom para você, por exemplo, pode não ser bom para mim. É bonita para você? Não necessariamente será para mim. Ah, e se todo produto fosse bem sucedido na mesma proporção em que seu inventor se empolga com tal invenção, empresas não faliriam. Daí o entendimento da diversidade de percepções. (…) Neste exemplo, a verdade não está naquilo que o inventor diz, mas na percepção do cliente sobre a invenção. Assim, ainda que o inventor classifique o produto como verdadeiramente bom, é a percepção do cliente que consolidará (ou não) sua venda; ou seja, se o cliente realmente não perceber o produto como bom, a suposta agradabilidade do produto, antes sugerida por seu próprio inventor, passa a ser uma inverdade (assim como inverídica seria, agora sob a opinião do inventor, a percepção do cliente sobre sua invenção). (…) O processo acontece com a mulher bonita que se casa com o homem feio, o pobre que vê uma luz no fim do túnel e a fofoqueira de janela, provável fundadora da rádio-peão no Brasil, que percebe as verdades da vida à sua moda, do seu jeitinho. Vivem disso os galanteadores.

A verdade pura é uma utopia e dizer a verdade na terra dos seres humanos sempre estará à mercê de dois vieses: (1) o da conveniência — quando o bendito amedrontado mascara o fato verídico e embaça a visão da realidade, criando outras verdades — e (2) o da percepção — quando o que se percebe sobre a verdade se distorce por conta das peculiaridades individuais, condição que gera uma diversidade quase infinita de realidades e opções.

Afinal, qual é a verdade sobre a verdade?
Deus, diz o Antigo Testamento, é fonte de toda a Verdade. Só Ele. Talvez seja isso.