Não foi exatamente como entoava a já antiga e afeminada música do Eurythmics, mas acerca. Lá na essência, cá com meus botões, tudo bastante parecido. Foi como, diz a própria música, estar num quarto vazio e, de supetão, minutos antes de se lançar num oco interior, deparar-se por sorte — ou por obra divina, creio — com uma orquestra de anjos adentrando a porta a remexer, todos eles, o já quase enferrujado lado emocional dos lá trancafiados. Como se a tal voadeira de anjos nos servisse única e exclusivamente para reativar as emoções, os sentimentos, ao ponto de — quem diria? — enciumar até o duro lado racional. […] Nesta noite, certamente não por acaso, no meu quarto vazio adentrou somente um anjo ao invés de uma multidão deles. Uma, no feminino, mas já bastante suficiente. Dúbia, morena, beirando os 30, transparente na expressão e sólida no que dizia, sentou-se à minha frente sem asas, que, por aqui, nesse mundinho, foram substituídas, embora a substituta não a fizesse voar, por uma jaquetinha de couro indefectível, moderninha, com a cara de ser cara. Já diziam pelos 90, ♪ nesse mundinho fechado ela é incrível ♫. Era simples por um lado, azeda e alcoolicamente sonolenta pr’outro; tinha um lado zen típico dos anjos ao mesmo tempo em que lançava, sem titubear, olhares-43 típicos dos homens. E ela, digo a anja, era encantadora não somente pelo sorriso, pelo perfume ou pela beleza — desde a época da adolescência características nela peculiares —, mas sobretudo pela mensagem divina que trazia, típica dos anjos. Ali, a falar, recitou, como se não soubesse de onde a tal vinha, uma mensagem mágica e bem mais completa que a deixada pela música do Eurythmics. Foi mágica tamanha que, de tão bem feita, classificou-se como difícil-de-se-decifrar, difícil-de-se-digerir; foi tão completa que, como toda boa mensagem, preencheu um vazio. […] Afinal, imagino que sejam essas mesmas as cousas dos anjos: aparecem de repente, entram sem bater, abrem-nos o baú nonde se guardam as essências da vida, enfiam-nos baú abaixo uma mensagem divina, fecham o bendito e o legado fica lá, a sete-chaves. Acabam mexendo com nossa vida sem que percebamos, sem que eles mesmos percebam; de repente porque são bem pagos para isso ou porque Ele — e não me parece interessante desobedecê-lo! — simplesmente quis assim. […] Enfim, a anja que hoje sentou à minha frente não se encontra em qualquer lugar. É rara, encanta, faz as horas passarem às pressas. Fantasia-se de fisioterapeuta só para enganar, disso sei bem. Porque no fundo — nem tão fundo assim — ela senta e diz o que diz, d’um jeito que só ela sabe, porque a mensagem marca a vida, altera-nos quase que instantaneamente: em suma, “peça paz a Deus e agradeça-O“. Hoje, além dos pedidos que me são necessários e as mensagens de gratidão que Lho devo, agradecerei também ao sopro que trouxe anjos ao meu quarto vazio. Divino sopro. Agradecerei em especial à ventania que me trouxe a tal anja azeda e sua jaquetinha de couro preto indefectível.
♪ Must be talking to an angel ♫