Sobre a hipocrisia

 

 

Fingir que é, mas não ser. Ser essencialmente feio — no amplo sentido do termo —, mas colocar-se à frente como se as próprias ações e os aspectos físicos fossem belos o suficiente, tão belos!, ao ponto da própria imagem beirar a perfeição. Uma espécie não-rara de idealismo que permeia as relações de hoje; uma reviravolta na forma, o que não é em é — a hipocrisia.

Hipócrita é o tipo que, mesmo após um banho quente de 45 minutos, defende o uso de sacolinhas plásticas biodegradáveis porque o meio ambiente está em colapso. O tipo que cultua culturas alternativas porque se diz multicultural, cult e [?] não gosta de ler. É o tipo que se mostra responsável socialmente, mas que, voluntariamente, nada faz ou já fez em favor de outro. É o tipo que brada contra a corrupção, mas está disposto a negociar com um policial rodoviário no caso em que não estiver com a documentação do carro em dia. Critica Justin Bieber, mas canta Baby numa boa. O tipo que não vive dias ruins, que nunca frequenta lugares ruins e está sempre sorrindo, em bons lençois. É a garota que, essencialmente piriguete, critica as piri-piri-piriguetes assumidas. Ou mesmo o garoto que, fundamentalmente macho, nega o seu lado sensível. É o tipo que se diz patriota, regionalista, e vive a elogiar os states ao mesmo tempo em que critica aos punhados a terra-mãe. O quase-homem que, por um ou outro interesse, diz o que não diria ou é o que essencialmente não seria. O tipo que defende o seja-você-mesmo e, bem lá no fundo, nunca foi si próprio. Preconiza o trabalho, trabalha pouco; diz-se rico, ganha pouco; compartilha o amor, não ama; diz curtir o amigo, não gosta. Sorri amarelamente e apoia, muito a contragosto, uma ideia que não apoiaria. Acena e aperta a mão em função do protocolo, pois a cabeça noutro lugar, noutro assunto, não se atenta à pessoa. É o tipo que tenta viver de acordo com os princípios da moralidade social ainda que, na essência, seja um indivíduo imoral, libertino e desonesto. É não possuir, mas fingir que possui; não crer, mas fingir que crê; não sentir, mas fingir que sente; atuar, ‘malemá, no pior sentido do verbo. Hipócrita é o tipo que, como já diziam, “oculta a realidade atrás de uma máscara de aparência”; uma espécie não-rara de gente que faz do mundo, pobre mundo, um lugar um pouquinho mais mentiroso, oco, complicado de se viver.

Certa vez, lá pelas tantas de 1500, Montaigne usou uma figura ligada à justiça para ilustrar a hipocrisia. Escreveu que até um juiz seria capaz de rasgar um pedaço de papel para enviar um bilhete amoroso à mulher de um colega, danadinho, da mesma folha onde acabara de escrever a sentença de condenação de um adultério. E é isso que, no presente, vemos por aí: no que se expõe, um mundo de beleza, amor, fraternidade e solidariedade; na vida real, por outro lado, um bando de piriguetes, homens sensíveis, pessoas carentes, malandras, corruptas, pseudo-cults, malemolentes, boêmias, contas-no-vermelho, sorrisos-colgate e egoístas a vagar pelas ruas, pela internet, jogando latinhas de cerveja e bitucas de cigarro pela janelinha, postando fotos e textos como se seus perfis fossem ideais e o dia-a-dia estivesse às mil maravilhas. Ahvá.

Montaigne dizia ainda que comumente nos são sugeridos modelos de vida que sequer quem os propõe — tampouco seus auditores — têm esperança de seguir ou, pior, o desejo de os realizar. Por fim, citando-o quase que literalmente, “deixemos, sendo assim, que as leis e os preceitos sigam o seu caminho: nós tomamos outro, não só por desregramento de costumes, mas também frequentemente por termos opiniões e juízos que lhes são contrários“. Os ditames sociais supérfluos de um lado, nós do outro.

Tiremos as máscaras.

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