O livro dos sonhos — Parte II

 

Pelé

 

O choro de Pelé não era à toa. A taça do mundo, enfim, era nossa. E pela primeira vez. Diziam: com brasileiro não há quem possa! Também, que tipo de time poderia suportar a pressão de uma seleção brasileira com Gilmar, Djalma Santos, Bellini, Orlando, Nilton Santos, Zito, Didi, Garrincha, Pelé, Vavá e Zagallo? Quem poderia? Os caras eram bom no samba, bom no couro. Ligada em todo canto, a voz de Osvaldo Moreira se estropiava ao bradar o eterno Gol de Pelé! Aos 46 do segundo tempo, Pelé acaba de marcar o quinto tento do Brasil! Em 1958, os televisores eram incomuns, de modo que a maioria sintonizava a Rádio Nacional. Não era rara a cena na qual dezenas de pessoas se reuniam para ouvir os jogos. Ali, na pequena Careaçu, não era diferente.

Enquanto o povo comemorava o primeiro título brasileiro na Copa do Mundo, um pequeno garoto refletia. Tinha apenas 14 anos. À época, passava pela cabeça do pequeno Pedro a ideia de viajar arriscadamente a São Paulo. Como bom homem, pretendia tirar a família da situação em que vivia por ali, no sul das Minas Gerais. Mamãe, vou a São Paulo em busca de melhores condições. Sabia que os primeiros anos seriam duros; afinal, menores de idade ganhavam metade dos salários comuns aos já adultos. Assim que me ver livre do exército, aos 18, venho em busca de nossa família, dizia confiante. Então, em 1959, um ano depois de assistir à seleção canarinho conquistando a Jules Rimet, a família inteira de Pedro viria a São Paulo. Além do garoto sonhador, viajaram Benedita, Venuto, Ausenda, Maria, Zezé e a pequena Odorica. Venderam tudo em Minas Gerais — panelas, camas, mesas e, anos depois, até o próprio casebre! — em busca de uma nova vida. Clichê da época: eram pobres, vinham de longe e acabaram pairando em São Paulo.

Nos primeiros quinze dias na cidade grande, restou-lhes um porão. Até que arrumassem uma casa para morar, viveram com Tio Joaquim, irmão de Benedita. Alugaram, enfim, um casebre quarto-cozinha e nada mais. Sequer fogão tinha, este improvisado no lado externo da casa, no chão mesmo, suscetível às pancadas de chuva. Para o sustento, a matriarca pôs-se a lavar roupa fora, o pequeno Pedro passou a trabalhar como tapeceiro e Ausenda, como doméstica; Maria ingressou numa oficina de costura e a pequena Odorica, antes vendedora de pirulitos e empregada do casal Homero e Maria, virara faxineira aos 11. […] Odorica ia à escola de manhã e à tarde faxinava toda a casa de uma enfermeira. Aos 12, já com 5 anos de experiência, chegou a trabalhar na Mooca, mas fora despedida por conta de suas frequentes cólicas comuns à idade. O tempo passava. Arrumou emprego na Rua Oriente, próxima ao local de trabalho da irmã Maria; iam juntas. Por conta de sua já antiga habilidade com vendas, foi convidada ainda criança para trabalhar numa loja de uniformes. Aos 14, já adolescente, conseguiu uma vaga na Nitroquímica, em São Miguel. Era por lá que, na ocasião, já noutra casa, toda a família morava. É que anos antes, ciente de seus desejos, Benedita havia vendido o pequeno casebre em Minas Gerais para dar entrada noutro, nos arredores da Nitroquímica. E por ali Odorica ficara até os 17 anos, quando, após rápida passagem como vendedora de móveis, foi pentear bonecas na Estrela, a fábrica de brinquedos. Por lá se machucava e era maltratada; enfim, odiava. À época, já eram 10 anos ou mais de experiência no currículo da nem-tão-pequena garota, ali já aos 18. Chegava à maioridade. […] No todo, consolidaram-se em São Paulo. Esforçavam-se todos e não mais passavam fome; não mais viviam à custa da pequena olaria em Careaçu.

Em 1958, na tarde em que Pelé chapelou o zagueiro Julle Gustavsson e selou a vitória brasileira com o quinto gol da final contra a anfitriã Suécia, um garoto refletia no outro lado do mundo. Bastou um pensamento — o de Pedro — para reorientar os rumos de toda uma família. Mamãe, vou a São Paulo em busca de melhores condições. E isso acabou alterando a vida não somente do jovem adolescente, mas também a de sua mãe Benedita, a de Venuto, Ausenda, Maria, Zezé e a vida da nem-tão-pequena Odorica. O título mundial, por sinal, era outro: Pelé, Garrincha e Didi já tinham garantido o campeonato de 1962, no Chile.

A taça do mundo era nossa. Pela segunda vez.

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