O livro dos sonhos — Parte III

 

Miss

 

Vencedoras do concurso Miss Universo devem ter os punhos levemente mais flexíveis. Os acenos são incríveis.

[…]

Em 1967, cobravam 5% ao mês para emprestar dinheiro. Benedita, a pedido da filha, tomou um valor emprestado, algo em torno de R$200 nos dias de hoje. O agiota chegou a visitar o casebre da família em São Miguel para negociar. O objetivo era garantir o transporte de Odorica, já aos 20, em sua luta diária para conseguir um novo emprego; pegava ônibus. Benedita o guardava de forma disciplinada, abastecendo a filha a toda saída. Boa sorte, Odorica! […] Num dos dias, a garota disse não precisar do dinheiro. Mãe, hoje vou procurar emprego ao lado da Dutra. Não preciso do dinheiro, vou a pé. E foi bem cedo. Veio da zona leste de São Paulo, cruzou a rodovia Presidente Dutra, andou por muitos quilômetros, passou ao lado das grandiosas SKF, Pfizer e Olivetti, e, por fim, já beirando o meio-dia, chegou à Philips. Ao chegar, nada. Portões fechados e fábrica inacessível aos visitantes desconhecidos porque, obviamente, já naquela época era importante que alguém indicasse ao empregador o candidato à vaga. Odorica tinha ido a pé, sem dinheiro, sem nenhuma indicação e ainda aparentava cansaço. Naturalmente não conseguiria entrar. Arriscou-se ao perguntar o nome do segurança que guardava a entrada da multinacional e, com sucesso, continuou: Carlos, eu preciso trabalhar. O que eu faço? Não conheço ninguém. Descobriu que Senhor Reinaldo, chefe do departamento pessoal, estava prestes a chegar. No momento em que ele passar, garota, indicou o prestativo funcionário, mostro-o para você! Moreno baixote, Reinaldo foi abordado por Odorica minutos depois, assim que chegou do almoço. Trabalho desde os 7 anos, Senhor Reinaldo, já tenho carteira assinada; trabalhei na Estrela, na Nitroquímica e estou precisando demais desse trabalho. Recebeu das mãos do baixote um pequeno cartão e uma orientação. Volte amanhã. Exames médicos, testes e até continhas de matemática. Noutro dia, logo cedo, agora por indicação de Reinaldo, Odorica lá estava, preparando-se para compor a linha de montagem da Philips. Mal sabia, ajudaria a empresa por longos 12 anos produzindo aparelhos televisores, rádios e muitos outros produtos que revolucionariam toda a geração seguinte. Mal sabia, viraria chefe de produção algum tempo depois. Talvez a mais famosa.

Em 1968, já como funcionária, recebeu um convite enquanto trabalhava. Ela ainda pouco entendia, mas todo o fuzuê na seção acontecia porque os diretores passeavam por ali naquele exato momento, todos a escolher as representantes do concurso Miss Philips de 1968. Fez-lhe um convite um deles, o Senhor Jardim, certamente deslumbrado com sua beleza. Você tem chances, que tal aceitar o meu convite e participar de nosso concurso? A princípio envergonhada, Odorica procurou saber quem seriam as concorrentes ao pleito e, além, ainda precisava criar coragem para dois outros árduos afazeres: o primeiro era avisar o aspirante-a-marido Odair — com quem viveria um amor cinematográfico — de que participaria do tal concurso; o segundo, caso vencesse a competição, era participar do Programa Silvio Santos. […] Dia do evento e a música estava por conta do maestro Caçulinha. A família estava presente, o que incluía a mãe Benedita e alguns de seus irmãos. A plateia contava ainda com algumas das mais importantes autoridades da época, dentre elas o prefeito de Guarulhos. Ainda nervosa, a candidata deixou os últimos retoques do penteado sob a responsabilidade da irmã Ausenda. Chegava a hora. Na passarela, Odorica! E assim, sem que nada a pudesse impedir, a antiga vendedora de pirulitos estava a desfilar, linda. Era, talvez pela primeira vez na vida, o centro das atenções. Fotos, flashes, assobios. E pouco bastaram as concorrentes. Em 1968, a coroa era dela. Odorica era a Miss Philips.

[…]

Como funcionária, doze anos se passaram. Em 1979, como prova de que as fases da vida são como ondas, Odorica estava de saída da empresa. A Philips estava se mudando para a zona franca de Manaus. Ao agradecer por tudo, foi vista acenando de forma incrível em direção aos antigos colegas de trabalho, em tom de despedida: o punho direito levemente mais flexionado, um sorriso lindo no rosto e a pose única, incomparável.

Era a mais bela miss.

O livro dos sonhos — Parte II

 

Pelé

 

O choro de Pelé não era à toa. A taça do mundo, enfim, era nossa. E pela primeira vez. Diziam: com brasileiro não há quem possa! Também, que tipo de time poderia suportar a pressão de uma seleção brasileira com Gilmar, Djalma Santos, Bellini, Orlando, Nilton Santos, Zito, Didi, Garrincha, Pelé, Vavá e Zagallo? Quem poderia? Os caras eram bom no samba, bom no couro. Ligada em todo canto, a voz de Osvaldo Moreira se estropiava ao bradar o eterno Gol de Pelé! Aos 46 do segundo tempo, Pelé acaba de marcar o quinto tento do Brasil! Em 1958, os televisores eram incomuns, de modo que a maioria sintonizava a Rádio Nacional. Não era rara a cena na qual dezenas de pessoas se reuniam para ouvir os jogos. Ali, na pequena Careaçu, não era diferente.

Enquanto o povo comemorava o primeiro título brasileiro na Copa do Mundo, um pequeno garoto refletia. Tinha apenas 14 anos. À época, passava pela cabeça do pequeno Pedro a ideia de viajar arriscadamente a São Paulo. Como bom homem, pretendia tirar a família da situação em que vivia por ali, no sul das Minas Gerais. Mamãe, vou a São Paulo em busca de melhores condições. Sabia que os primeiros anos seriam duros; afinal, menores de idade ganhavam metade dos salários comuns aos já adultos. Assim que me ver livre do exército, aos 18, venho em busca de nossa família, dizia confiante. Então, em 1959, um ano depois de assistir à seleção canarinho conquistando a Jules Rimet, a família inteira de Pedro viria a São Paulo. Além do garoto sonhador, viajaram Benedita, Venuto, Ausenda, Maria, Zezé e a pequena Odorica. Venderam tudo em Minas Gerais — panelas, camas, mesas e, anos depois, até o próprio casebre! — em busca de uma nova vida. Clichê da época: eram pobres, vinham de longe e acabaram pairando em São Paulo.

Nos primeiros quinze dias na cidade grande, restou-lhes um porão. Até que arrumassem uma casa para morar, viveram com Tio Joaquim, irmão de Benedita. Alugaram, enfim, um casebre quarto-cozinha e nada mais. Sequer fogão tinha, este improvisado no lado externo da casa, no chão mesmo, suscetível às pancadas de chuva. Para o sustento, a matriarca pôs-se a lavar roupa fora, o pequeno Pedro passou a trabalhar como tapeceiro e Ausenda, como doméstica; Maria ingressou numa oficina de costura e a pequena Odorica, antes vendedora de pirulitos e empregada do casal Homero e Maria, virara faxineira aos 11. […] Odorica ia à escola de manhã e à tarde faxinava toda a casa de uma enfermeira. Aos 12, já com 5 anos de experiência, chegou a trabalhar na Mooca, mas fora despedida por conta de suas frequentes cólicas comuns à idade. O tempo passava. Arrumou emprego na Rua Oriente, próxima ao local de trabalho da irmã Maria; iam juntas. Por conta de sua já antiga habilidade com vendas, foi convidada ainda criança para trabalhar numa loja de uniformes. Aos 14, já adolescente, conseguiu uma vaga na Nitroquímica, em São Miguel. Era por lá que, na ocasião, já noutra casa, toda a família morava. É que anos antes, ciente de seus desejos, Benedita havia vendido o pequeno casebre em Minas Gerais para dar entrada noutro, nos arredores da Nitroquímica. E por ali Odorica ficara até os 17 anos, quando, após rápida passagem como vendedora de móveis, foi pentear bonecas na Estrela, a fábrica de brinquedos. Por lá se machucava e era maltratada; enfim, odiava. À época, já eram 10 anos ou mais de experiência no currículo da nem-tão-pequena garota, ali já aos 18. Chegava à maioridade. […] No todo, consolidaram-se em São Paulo. Esforçavam-se todos e não mais passavam fome; não mais viviam à custa da pequena olaria em Careaçu.

Em 1958, na tarde em que Pelé chapelou o zagueiro Julle Gustavsson e selou a vitória brasileira com o quinto gol da final contra a anfitriã Suécia, um garoto refletia no outro lado do mundo. Bastou um pensamento — o de Pedro — para reorientar os rumos de toda uma família. Mamãe, vou a São Paulo em busca de melhores condições. E isso acabou alterando a vida não somente do jovem adolescente, mas também a de sua mãe Benedita, a de Venuto, Ausenda, Maria, Zezé e a vida da nem-tão-pequena Odorica. O título mundial, por sinal, era outro: Pelé, Garrincha e Didi já tinham garantido o campeonato de 1962, no Chile.

A taça do mundo era nossa. Pela segunda vez.

O livro dos sonhos — Parte I

 

1954

 

1954. Manhã de sol, 30 de setembro. Às 6h10, o silêncio era cortado pelo som dos bem-te-vi! e por duas carroças arrastadas aos pangarés em direção à praça principal, cambaleando pela empoeirada avenida. Levavam leite. Ao longo do caminho, do alpendre dos casebres, ouvia-se também o locutor da rádio em volume baixo, numa danada chiadeira ao fundo, com sua voz empostada para todo o Brasil: este noticiário é um oferecimento de Romi-Isetta. O lado bom da vida é o lado de dentro de uma Romi-Isetta! Nas casas, o som dos talheres de café da manhã; homens e crianças ao trabalho e às aulas. A cidade acordava, era tomada pelo sol e pelo cheiro de café moído.

Ali, ao sul das Minas Gerais, morava Odorica Aureliana, uma pequena garota de família pobre e sofrida, filha de Benedita Aureliana Perantula e Pedro Bassiano. Perdera o pai precocemente anos antes, antes mesmo que pudesse conhecer melhor os detalhes históricos de sua imigração italiana; Pedro nascera em Genova. Ainda muito jovem, viu a mãe Benedita alugar uma pequena olaria — local onde se produziam tijolos com barro ou argila — para o sustento da família à custa de muito esforço. Morou num casebre com chão de terra batida, chegou a dormir enrolada em folhas de bananeira que as protegia, e mais um bando de crianças, do frio. Irmã de quase uma dezena, viu o irmão Venuto gastando todo o dinheiro da olaria com jogos e bebidas; viu a irmã Ausenda — os nomes eram italianos — trabalhando num hotel ainda criança, preparando refeições e servindo hóspedes; viu a irmã Maria trabalhando como doméstica, também bem cedo. Maria, inclusive, certa vez foi ao circo e lá aprendeu como os pirulitos eram feitos artesanalmente. Aos 6, a pequena Odorica já os vendia na rua. Olha o pirulito! Olha o pirulitô! Batia de casa em casa a vender, sempre se aproveitando do fato de que, à luz dos anos 50, naquela pequeníssima cidade, as mulheres geralmente tinham muitos filhos. Chegou a propor um trabalho em conjunto, nonde ela venderia enquanto a irmã gritava. Maria tinha vergonha. A vendedora, de fato, era a pequena Odorica. Olha o pirulito! Olha o pirulitô! […] Ali vivia.

Naquela manhã de setembro, às 6h10, ao som dos pássaros, a pequena já estava de pé a pensar no breve passado. Em frente ao espelho, olhou para si. Toda bendita manhã, buscava o leite e o pão, depois moía o café. Ainda criança, já havia deixado de vender pirulitos artesanais para cuidar de crianças e auxiliar nos afazeres domésticos; era empregada em casa de família. Tinha somente 7 anos. Preparava o desjejum diariamente, ajeitava as pequeníssimas crianças e punha-se a conversar com os adultos antes de ir à escola. Não aumente meu salário e logo saio!, bradava em voz infantil. Ganhava alguns poucos mirreis ao mês e chantageava os patrões Homero e Maria com certa frequência. Fique mais um ano conosco e, prometo, arrumarei seus dentes!, retrucava o patrão, tentando convencê-la a permanecer. Chegou a ir pr’outra casa de família, onde as crianças eram birrentas e a mordiam. Não gostava e, meses depois, voltou à casa de Homero. Aliás, era de se entender que a pequena garota continuasse a trabalhar; afinal, mesmo pobre, ela era bem alimentada pelos patrões. Às 6h55, já havia ingerido uma generosa medida de café com leite e a metade do pão sovado que lhe era oferecido; o restante, guardava para o recreio. O sinal da escola tocava pontualmente às 6h55 porque às 7h00, também pontualmente, entravam todas as crianças. De tão pequena, o alerta ecoava por toda a cidade. De tão pequena, ninguém se atrasava em Careaçu. […] Ao meio-dia a garota já estava de volta e o almoço, pronto. Comia às conchas e não raramente — aos 7! — lavava toda a louça.

Passou o tempo e a pequena chegou a cobrar a promessa do saudoso Homero. Senhor Homero, ‘óia, quando o senhor vai colocar o meu dente novo?, num sotaque tipicamente mineiro. Sem dentes novos, teve uma infância sofrida, mas feliz. Vendeu pirulitos, trabalhou em casa de família. E não há dúvidas de que também subiu em pés de jabuticaba e se esbaldou no rio que atravessava a cidade; certamente contou o dinheirinho que trazia para ajudar em casa, aprontou, apanhou da mãe e depois, com o rosto ainda sujo por uma mistura de pó e lágrimas, sorriu. Escreveu em vida uma história digna de um livro que bem mais tarde transformar-se-ia numa de suas vontades: O livro dos sonhos, com a história de sua vida. Ali, onde o silêncio era cortado diariamente pelo som dos bem-te-vi! e por carroças arrastadas aos pangarés, crescia uma mulher digna de homenagens.

Crescia Odorica.

O livro dos sonhos — Epígrafe

 

O livro dos sonhos

 

Minha mãe se chama Odorica, nome de origem italiana que bem a define: senhora próspera. Meu nome é Willian Girarde. Certa vez me disse que a história de sua vida daria um bom livro e que, num de seus sonhos, gostaria de vê-lo escrito em vida. Até então, sobre a tal história, à exceção dos contos fundamentais, eu pouco sabia. Aliás, é infelizmente comum que saibamos pouco sobre a vida de nossos pais e avós. Então, sem que ela soubesse, sentei à mesa num almoço e pus um aplicativo do telefone a gravar uma conversa de 45 minutos. Foi um dos bate-papos mais divertidos que tivemos. Estávamos em 2012, meados de outubro; eu tinha 31 e ela, 64. Fiz questão, ali, que expusesse um pouco de seus momentos mais marcantes. Na cabeça, a vontade de escrever o livro dos sonhos dela, ainda que pequeno, à minha moda. Na cabeça, a vontade de mostrar ao mundo um pouco da história de minha querida mãe. […] Nos textos procurei expôr em detalhes algumas das importantes lembranças que antecederam a minha vinda ao mundo, em 1981. Porque depois disso, evidente, exceto pela mais tenra infância, as coisas a mim foram se tornando mais claras, sobretudo em nossa relação. Lembro-me bem da época em que ela me levava ao Jardim Encantado — escola nonde cursei o ensino primário — com a lancheira recheada, lembro-me da época em que ela torcia por mim enquanto me arriscava com a camisa 8 no time de futebol do Esporte Clube Vila Galvão, das malcriações adolescentes e da paciência que ela tinha para me aguentar nessa difícil fase. Lembro-me também do acidente automobilístico que sofremos, quando não a perdemos porque meu pai foi heroico; lembro-me da época em que, em meio a almoços e arruma-malas dos filhos, ajeitava-nos para as aulas e para o mundo, das viagens a Minas Gerais, das broncas que me dava, à toa ou não, da época em que avaliava minhas namoradas; enfim, lembro-me de nosso dia-a-dia, que felizmente perdura até os nossos dias. Criou-me, viu-me crescendo, cresceu junto. Nas minhas recordações, uma mulher sábia que bem edificou sua casa, sua família, exatamente como dita a Bíblia. Em minha mais bonita recordação, um simples abraço — o melhor dentre os que já recebi! Nunca vou te deixar só, disse. […] Obviamente tenho em memória muitos outros momentos; muitos muitíssimo bons, alguns poucos nem tanto. Mas os momentos que me antecederam, esses não estavam tão claros, ao menos a mim não estavam ditos. Da garota sofrida que vendia pirulitos nas ruas e sua vinda a São Paulo até a vitória no concurso de miss e o casamento com Odair Girarde, meu pai, houve todo um belíssimo trajeto. Foram momentos que a construíram, que precisavam ser expostos para que ela se sentisse completa. Daí a vontade que tinha de ter escrita sua própria biografia — O livro dos sonhos. Tinha.

Eis o pequeno livro.

Emanuel

 

 

Não é comum, hoje em dia, que se coloque o nome ao próprio filho de Emanuel; é nome antigo, concordo, como os que denominaram crianças em 1920, hoje avós. Ainda assim, e mesmo com a possibilidade de que seja chamado de Mané pelos seus, meu filho levará o nome Emanuel. Emanuel Girarde, talvez com algum outro sobrenome no meio. O motivo é nobre, amado filho — e agora, embora você ainda não exista, volto-me a ti pela primeira vez —: a origem de seu nome é hebraica e, quando traduzido, significa Deus está conosco. Daí sua nobreza. E sendo assim, Emanuel, não nos importa, portanto, que o nome seja tão belo; importa, sim, o seu significado. Emanuel. […] A refletir, decidi que o primeiro de meus textos destinado exclusivamente a ti visa lhe apontar alguns caminhos. Não que sejam os mais verdadeiros e consideráveis caminhos, mas talvez ainda válidos em sua geração, mesmo que tão tão distante.

Sobretudo, Emanuel, valorize a sua família e os seus amigos. Porque todo elemento que estiver num conjunto externo ao conjunto de seus amigos e de sua família, meu filho, não é elemento fundamental o suficiente. Aqui, enfatizo: quando eu digo sobretudo, digo porque a vida comumente nos apresenta — em frequência altíssima! — muitos atrativos aparentemente mais interessantes do que uma tarde em família ou uma conversa entre amigos. Então, abocanhados pela tentação, substituímos o fundamental pelo supérfluo. Somente para que melhor entenda, uma tarde em frente a um computador — ou qualquer que seja o nome do dispositivo que o conecta à internet —, algumas horas em frente a um videogame ou mesmo um bate-papo à toa com a menina que você tanto gosta, por exemplo, nunca serão suficientes para substituí-los à altura. Sobretudo, filho, valorize sua família e os seus amigos porque eles realmente estarão ao seu lado nos momentos em que mais necessitar, nas horas em que você mais precisar de uma mão forte para lhe ajudar a levantar, a dar uma sacudida e seguir em frente. Valorize-os porque eles te amam de verdade, sem quaisquer interesses. […] E se um dia, meu caro, você resolver constituir a própria família, saiba bem que deverá encarar tal sonho como algo sério, ou seja, algo que não deve servir de prenda, sob nenhuma hipótese, nos leilões à toa que são promovidos por aí. Isso significa que você não deve se empuleirar com qualquer bonitinha que lhe aparecer bem vestida, com o corpinho sarado, toda oferecida, a arrebitar o traseiro em sua direção. Não a sobreponha em sua escala de importância. Aqui, meu filho, assim como no apontamento anterior, é a sua futura família que deve estar em primeiro lugar na mente, não o status ou a beleza de sua mulher. Fuja, portanto, dos leilões de sonhos que provavelmente seus amigos promovem junto às mais bonitinhas de sua turma; ao invés disso, escolha uma mulher admirável que sonhe tão alto quanto você, abrace-a forte e siga com ela em frente, superando os obstáculos que defrontarem o relacionamento de vocês, dia após dia. […] Pratique esportes e torça para o São Paulo Futebol Clube, ainda que sua querida mãe torça para o Santos ou para Corinthians. É que, caso você não o faça, perderá oportunidades de ir a estádios de futebol comigo. E eu posso lhe afirmar, pelas experiências que tive com seu avô, que gritar gol ao lado do pai é uma das sensações mais bacanas que existem. Além do mais, considerando o dia em que escrevo este texto, o tricolor paulista é o time mais vencedor do Brasil. […] Aprenda a gostar de ler e leia muito na adolescência. Se o fizer, praticamente excluirá de si a petulância típica dos adolescentes e instalará um catalisador em seu sistema mental, com o qual as coisas serão mais rápidas! […] Na dura caminhada, Emanuel, exceto no caso em que estiver numa improvável e remota era gerida por um sistema menos obsoleto que o capitalista, você precisará de dinheiro. Dinheiro para o cotidiano, dinheiro para se divertir, para fazer compras e para comprar seu primeiro um-ponto-zero e subsequentes carros, mas não só; principalmente, precisará de dinheiro para manter a guarida de sua família. Decerto você também chegará à faixa etária em que vislumbrará a aquisição de um carro esportivo, a mansão de seus sonhos, ou mesmo na fase em que projetará uma conta bancária recheada, com sobras para investimento em renda variável. Sugiro, Emanuel, independente do tamanho de seus sonhos, que você faça boas escolhas profissionais e tenha o pé no chão para não se frustar. Por um lado, se optar por ser funcionário, siga à risca o protocolo do mercado e seja proativo, sempre estudando bastante e à frente de outros profissionais; por outro, se optar por empreender — como seu pai —, prepare-se para sofrer com a falta de dinheiro e estrutura no início dos tempos, bem como para lidar com a pressão por resultados imediatos, que, justamente por serem imediatos, são praticamente impossíveis de se conquistar num só clique. Em relação ao dinheiro, meu filho, tenha muita paciência, pois o alcance da estabilidade na vida financeira acontece aos poucos, bem aos poucos, tijolo por tijolo. Esteja ciente, entretanto, que, apesar de sempre pressioná-lo para que cresça nesse sentido, eu sempre estarei ao seu lado nas épocas de vacas magras, exatamente como ao meu lado seus avós estiveram. […] No decorrer da vida, Emanuel, não guarde nenhum tipo de rancor. Afirmo-lhe com propriedade que rancor é o pior sentimento da face da Terra, um típico estraga-vidas. Assim, se porventura nós discutirmos, brigarmos e as cabeças pegarem fogo, façamos as pazes em, no máximo, 24 horas. Esqueçamos sem traumas a experiência ruim porque, afinal, nossa família será sempre maior. […] E, por fim, meu filho, prepare-se para os tempos em que nossos papeis naturalmente vão se inverter: eu cuidarei de ti até me tornar mais fraco e, então, será a sua hora de cuidar de mim e de sua querida mãe. Quando essa época chegar, acompanhe-nos, esteja ao nosso lado. Nós precisaremos.

Não que os caminhos sejam os mais consideráveis, querido filho. Não tenho dúvidas de que cada qual os próprios caminhos traça. Talvez estes aqui descritos sejam válidos não só para ti, mas também para mim. É que, hoje, os caminhos que por aqui sigo são por ti, por Sofia. São caminhos que traço somente para encontrá-los em breve, logo mais, para um forte abraço e por toda uma vida em família. Com sabedoria e junto a Deus.

Espero-te, filho.