Segredo

Praça da Língua

 

Enfim, posso contar um de meus segredos. Aos meus, eu fazia questão de mantê-lo sob a proteção de um forte cofre mental onde guardo outros segredos do tipo. Fazia questão. E fazia — neste tempo verbal — porque chegou, enfim, a hora de contar. Não gostaria que fosse assim, mas agora infelizmente posso.

No terceiro piso, um auditório grande. 250 pessoas. Distribuíam uma senha com antecedência e, então, no horário marcardo liberavam a cancela. Um a um, os espectadores entravam e escolhiam o lugar de preferência para assistir a um filme. Ao contrário do que fazemos nos cinemas, eu sempre indicava a primeira fileira e, justamente porque poucos conheciam o segredo, ela sempre estava vazia. O segredo era, na verdade, o verdadeiro motivo da indicação, mas assistir ao filme dali não era desagradável. Ao sentar, via-se a imagem de uma galáxia montada na tela a partir de uma vórtice de palavras. Aquilo se repetia incansavelmente até que o filme se iniciava. Quase na altura da grande tela, era como se estivéssemos em frente a uma televisão widescreen de Itu, mas numa proporção ainda maior que a 16:9. Em si, embora não se comparasse com o segredo, o filme era ótimo; tratava a nossa língua portuguesa com um carinho ímpar e, além de ensinar um pouco de história relacionada ao tema, ainda expunha diversas personalidades realizando leituras de trechos clássicos dramaticamente. A emoção começava ali mesmo. Ali, apaixonar-se pela língua portuguesa não era difícil sequer aos maiores entusiastas das ciências exatas. Ali, idiomaterno passava a ser termo útil para bem definir a linguagem da nossa terra e os usos cotidianos do português como impressionante forma — e a de mais 270 milhões de pessoas — de expressar sentimentos, desejos, cultura e tudo que nos sai da boca pra fora, mesmo que nas mais complexas conjugações e regras gramático-ortográficas. Por si só, o filme já era justificativa plausível para uma visita àquele local. Mas havia o segredo. E o segredo vinha logo após. Ia além de uma tela widescreen, além da já forte emoção com aquele conteúdo todo.

Penetra surdamente no universo das palavras. Das palavras. Você não sabia, eu não contava a ninguém, mas agora vou te contar. Esta em itálico é a frase que você ouvia assim que tela e a parede que a sustentava se punham na horizontal para dar passagem aos espectadores. Por trás da tela na qual se assistia ao filme havia uma surpresa. O surpreendente local era chamado de Praça da Língua e talvez esse fosse o único de seus defeitos. Era muito mais que uma praça. Talvez Casa da Língua fosse nome mais adequado, pois dava a impressão de que a língua portuguesa ali morava. Penetra surdamente no universo das palavras. Das palavras. A parede já sobre nossas cabeças, uma passagem e um novo ambiente, onde se ouvia a frase ininterruptamente até que um turbilhão de conteúdo — muito mais intenso que o anterior — começasse. Ao invés de poltronas, uma pequena arquibancada em desenho quadrado, o chão repleto de pequenas telas — sobre onde, sim, era possível caminhar — e o teto sob a forma de um telhado de casa antiga, com treliças de madeira, onde eram projetadas imagens. Todos se acomodavam — inclusive a parede, que voltava ao seu devido lugar — e, então, sentados, trancafiados num espaço mágico, vivíamos uma experiência para nunca mais esquecer, como aquelas que se afixam na memória e não saem nem com tratamento psicológico dos bons. Sim, esse era meu segredo. Nas mais de quinze vezes que lá estive, em nenhuma eu falei da existência da Praça da Língua. Sempre fiz questão de criar expectativas naqueles que me acompanhavam, sempre dizendo que viveriam experiência incrível se aceitassem meu convite. Então, eu os convidava para retirar a senha e pegar a fila com antecedência. Vivíamos. E nunca houve relato de alguém que tenha se arrependido.

A propóstito, talvez meu novo segredo seja não dizer o que havia lá dentro, mesmo classificando como dura a tarefa de reproduzir em texto ou discurso tamanha emoção. Infelizmente, talvez eu guarde este novo segredo por um bom tempo. É que, ontem, tomado por um grande incêndio, foi-se às cinzas todo esse universo de cultura, interação, gente inteligente e de lágrimas que, em vão, insistíamos em lá dentro esconder. Foi-se o templo do idiomaterno. E, assim, sem mais nem menos, penetrar no universo das palavras, uma de minhas atividades rotineiras, virou passado até segunda ordem. Fogo, tragédia, pó.

Volte, Museu da Língua Portuguesa. Volte logo!
Estamos te esperando de braços abertos.

E com novos segredos.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *