Dona Ivone morreu. Sua morte — disseram-me há pouco que em decorrência de problemas renais — me fez refletir. E não porque já tive problemas renais, pois a derradeira hora chega a todos e sobre isso não se deve discutir, mas sobretudo porque o contexto no qual a notícia nos foi dada trouxe à tona de meu universo criativo um complexo tema: as lembranças.
Lembro-me de Dona Ivone fumando, elogiando-me às conchas quando aos 15. Lindo!, dizia ela. Dizia conjugado, pois, à medida que o tempo passava — e obviamente por conta das alterações físicas que a idade nos traz — o tempo do verbo permanecia estável, sempre no passado. Ela deixou, sendo assim, de me chamar de lindo e passou a dizer que, quando jovem, eu era lindo. Era. Quando jovem. E de repente não era mais. Eu havia envelhecido, engordado algumas arrobas e meus cabelos já não me deixavam modelar um topete a la Elvis. Lembro-me que, mesmo surpresa com a ineficácia de meu corpo em sua tentativa preguiçosa de manter a antiga beleza adolescente, Dona Ivone ainda cochichava nas raras vezes em que nos encontrávamos, sempre aos elogios. Educadíssimo!, murmurava em novo tom às senhoras à mesa. Voz grossa, típica de fumante compulsiva. Mulher distinta. Nem de minha família fazia parte, ao menos não diretamente.
Dona Ivone era irmã de um já falecido tio, por sua vez cunhado de minha mãe. Fernando. Ela e eu não nos víamos, exceto nas festas de família em que a presença era imprescindível ou por quase-pura sorte. Na prática, uma relação do tipo quase-nunca. Morreu, coitada, mas meu choro não se deu por isso; deu-se pelo contexto no qual a notícia nos foi dada.
Careaçu, de onde escrevi parte deste texto, é uma cidade de 8 mil habitantes. Uma aldeia, diria, civilizada, no sul das Minas Gerais. Em Careaçu minha querida mãe nasceu. E quando ali viveram meus familiares, por volta de 1950, nada havia além de folhas de bananeira, o Rio Sapucaí, a igreja, mato verde e uma televisão um-ponto-zero com a qual assistiam aos jogos de Pelé e Garrincha. Diz minha querida mãe que, quando criança, alimentou-se mal — consequência óbvia das condições financeiras de Benedita, falecida avó —, trabalhou logo cedo e tão logo veio a São Paulo, quando conheceu meu pai. Careaçu, de onde escrevi parte deste texto, é um caldeirão de histórias mágicas que ferve às borbulhas até hoje.
Quando em Careaçu recebi a notícia da morte de Dona Ivone, não chorei. Chorei depois. (…) Porque, entre ouvir a notícia que partiu da voz embargada de Fernanda — prima, filha de Fernando e sobrinha de Ivone — e chorar, de fato, deparei-me com o semblante oco de meus familiares. Ali, era como se o respirar fizesse mais sentido, como se o valor da vida, num flash, se elevasse às alturas. (…) Flashes à mente — talvez os mesmos que precedem o último suspiro —, toda uma vida que ia embora, nossas lembranças à flor da mente e o clima, ali, absolutamente oco. Então chorei. Ivone tinha ido, mas nós ainda tínhamos muito o que fazer, muita história para contar. A vida: sobretudo, precisávamos vivê-la.
(…)
Ficaram as lembranças. Ainda ficam.
Não saber o dia da partida é a grande incógnita, e saber viver cada dia como se fosse o último é a beleza da vida. Fazer bem o que se tem que fazer, amar as pessoas como se não as fosse ver mais e aceitar o que a vida oferece.
Nem sempre agimos assim, claro, meros humanos. Mas quanto mais nos dedicamos às coisas que realmente tem valor, mais nossa vida terá valido a pena!
Sabe, Lili, isso deve ser assunto de horas de debate, dias, meses. Parece-me existir um ponto ótimo entre a mente, a atitude e o comportamento que diferencia uma pessoa comum de outra, que vive. Porque raras são as que vivem, de fato. (…) E eu ainda chego lá.