Xilindró

 

 

De onde escrevo, sozinho observo. 18h30 de uma sexta-feira, segundo dia do mês de novembro, 2012, finados, e eu estou a aguardar uma amiga numa unidade brasileira da Starbucks — aquela famosa boutique de cafés norteamericana —, de onde, repito, sozinho observo. Noutro dia, também daqui, assim como agora, tive a clara impressão de que estamos presos. Com o perdão da demagogia, presos a nós mesmos. Daqui, de onde estou, já não tenho dúvidas de que, exceto por uma revolução no modo de pensar, o ser humano passou a ser prisioneiro de si; vive hoje como se o mundo girasse em torno de seu próprio eixo — ainda que, no peculiar caso, o tal eixo seja a própria cabeça, o diafragma, o bucho, a ponta do nariz ou mesmo a sola do pé. […] Parece-me, inclusive, que a justifcativa deste texto está mais na mensagem que pretende pôr à prova do que na efetiva preocupação que tenho com os desconhecidos que aqui comigo estão, fato que, por si, de certa forma já me insere ao contexto que estou prestes a descrever. Também não escrevo somente pelo incômodo, mas sobretudo pela vontade que tenho de simplesmente retratar uma condição histórica, quiçá a ser lida por alguém em época mais adiante, provavelmente em condições diferentes, sejam elas melhores ou piores, saber-se-á somente lá. A mensagem diz respeito às novas condições por meio das quais fomos reprogramados, por meio das quais voltamos ao xilindró.

Antes, há dois séculos, um tempo nem tão diferente. Dica de leitura, o livro 1808 retrata a vinda da corte real portuguesa ao Brasil e seus impactos no atual molde geopolítico do país, que certamente teria sido outro se D. João e o núcleo de sua família por aqui não tivessem estado ao longo de longos 13 anos. Longos, explico, porque, dizem, os anos entre 1808 e 1821 compuseram um dos períodos mais impressionantes da história brasileira. Por um lado, muito em função da abertura dos portos e da imposição de valores europeus à cultura brasileira, evoluímos na educação, na infraestrutura, nos trâmites do comércio e pudemos vivenciar um quê da liberdade que nos levou, um ano depois do retorno da bendita corte às suas terras, à independência de Portugal, em 1822; por outro, o período foi o berço da politicagem e do nepotismo no Brasil, da ideia de ociosidade no trabalho e da exploração ainda maior de negros desafortunados, escravizados à época, tidos como burros-de-carga. Presos. […] À luz daquela época, surgia a aristocracia no Brasil, potencializava-se a desigualdade social, a corrupção, a idolatria das sextas-feiras e o foco na individualização dos interesses.

Hoje. Liquidificadores produzindo frappuccinos, duas dezenas de notebooks abertos, papos do tipo conte-me-mais, altos tons de voz, tons de cinza, um muffin nojentamente mascado pelo homem-seguro-de-meia-idade, risadas forçadas ao fôlego da aceitabilidade social, cafés a $12,90, bolsas falsas e óculos-escuros comprados em seis vezes sem juros no Visa. Um bando longe de si. Aparentemente ideal, o ambiente aqui é, na verdade, bastante barulhento, caótico como os nossos ares, longe de ser agradável aos olhos de quem sobre ele reflete. Em altíssima resolução, é o retrato mais límpido possível de um quilombo contemporâneo, um novo Palmares concebido por modernos designers de interiores e aclimado com um ar engana-trouxa ao nível de agradáveis 22 Celsius. Nele, somos um bando de seres negros e brancos enfiados em roupas xadrez made in Brás devidamente engomadas e etiquetadas para justificar o elevado preço da vitrine e a percepção de valor claramente errônea por parte do consumidor; aqui, temos smartphones conectados 24/7 às tais redes que tanto nos distanciam, fios de cabelos crespos e alinhados temporariamente à moda de chapinhas baratas da 25 de Março, pois, espivetados, eles não resistem sequer a uma garoa ou a uma boa noite de sono; além, ainda estamos bezuntados em 500 ml de perfumes adocicados, com fragrâncias produzidas às centenas de toneladas nos laboratórios químicos não-sustentáveis que entulham as beiras de rios e rodovias por aí. 2012.

Bem verdade, nossa época é bem diferente em muitos aspectos, mas com condições essencialmente semelhantes às vividas no brasil-colônia. É que, de tempos para cá, aquela tal desigualdade social se consolidou e, com ela, também as novas sociedades geridas por um sistema operacional igualmente retrógrado, análogo ao que geria a escravatura. Antes, éramos escravos de outros; hoje, escravos de nossa própria mente, escravos das vontades que temos de conquistar os nossos — e somente nossos — objetivos, de suprir exclusivamente os nossos desejos. No máximo os de nossos mais próximos. […] De onde escrevo, por fim, sozinho observo: vejo um desfile de seres fortemente preocupados com a própria aparência, encucados com as coisas que os outros vão pensar. Um universo confuso, que não se decide. Aqui, é como se todos fôssemos sóis, com outros sóis girando ao redor do meu eixo, do eixo do outro. Um mundo que parece socialmente bacaninha, mas é fundamentalmente individual; que parece ideal, mas somente parece. E é neste contexto que hoje vivemos: somos os novos escravos, escravos de nós mesmos. Vivemos no mundo do cada um por si: afinal, quem de nós vai bem? Quem de nós vai mais longe? Eu! Eu! […] Somos burros-de-nossa-própria-carga. Somos, literalmente, meros indivíduos.

Onde estás, Isabel?

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