Nem Chapolin

 

 

Um indivíduo pode ter grave doença ou ser atropelado por um carro em alta velocidade e, assim, será a vítima. Ok. Outro pode se colocar como vítima sem mesmo sofrer, de fato, algo que o pudesse classificá-lo como tal. Entre um e outro, gritante diferença. Aqui, excluamos da reflexão as vítimas de fato, tais como as que sofreram algum mal súbito ou acidente automotivo. Consideremos somente aquelas que, por uma ou outra infundada razão, classificam-se como vítimas de direito, ou seja, pessoas que se [auto]posicionam — porque creem que têm direito — como vítimas da vida, das coisas, das condições, dos outros. Reflitamos somente sobre o fraco tipo de pessoa que atribui o próprio desempenho na busca pela plenitude à ação de outras coisas e pessoas sobre ela — não a uma ação dela própria sobre outras coisas e pessoas —, permitindo que o impacto do ambiente externo na vida seja mais forte do que o impacto de suas próprias decisões. […] Em suma, vítimas de direito são pessoas caracterizadas por relações de dependência quase doentia e, sobretudo, por um injusto sentimento de justiça atrelada a uma não-culpa. É a sofrida gente que se faz de vítima.

Abro citação. As pessoas estão tão diferentes atualmente que, sentindo-me só, raramente me interesso por alguém. Sofro porque meus amigos não aprendem o que a vida tem a nos ensinar. Eu sou bastante humilde, faço as coisas da melhor forma, mas certas pessoas não fazem o mesmo e isso não está correto. Minhas sofridas condições psicológicas existem em função da má relação que meu chefe — geralmente muito agressivo — tem comigo. Não me dou bem com parte de minha família porque muitos ali não me entendem. Resolvi me isolar porque não creio que exista amizade verdadeira ou mesmo o amor verdadeiro no mundo. Tenho vontade de chorar quando percebo que as coisas, antes muito bacanas, mudaram tanto — e para pior. Prefiro sofrer calado a falar o que realmente desejo falar. Aliás, pensando bem, pouca gente ouve o que eu tenho para falar. Trabalho muito, esforço-me além da conta e sou pouco reconhecido. Nem meus finais de semana são bons o suficiente. Ninguém me ama, ninguém me quer. Não fecho citação. […] E o jogo da vitimização segue infinitamente às frases mais surpreendentes, assim como surpreendente é o fato de não haver [auto]culpa nisso tudo sob a ótica da tal vítima.

Há, inclusive, o que parece ser um processo lógico traçado por vítimas de direito para resolver o problema da culpa. Num primeiro momento, entoada sob diversas formas — ou até postada na internet —, coitadinho de mim! é a frase  mais comumente utilizada nas situações em que o apoio é necessário. Então, os entes mais próximos [por vezes outras vítimas de direito] sentem e passam a apoiar mais por uma espécie alternativa de responsabilidade social do que por vontade verdadeira. A vida passa a duras penas, a vítima de direito é vista como vítima de fato e então, quando percebe o apoio de outras pessoas, deixa que o sentimento de culpa vá embora por pura conveniência. Ali, é como se todo o contexto desfavorável se transformasse numa decorrência natural do comportamento ou ato de outro, não do próprio ato ou comportamento. Ufa, a culpa não é minha! Sou vítima!

Sob meu ponto de vista, a culpa pelo fracasso ou sucesso é sempre de quem o vive, não de outro. A vítima de direito fez algo ou colocou-se propositalmente ali, fraca, a reclamar da situação construída por si mesma porque quis, porque não foi capaz ou por outra porcaria qualquer que tenha feito. É como se não conseguisse se [auto]explicar ou realizar o suficiente e, sob pressão, pusesse noutro ser humano ou coisa a culpa pelos próprios infortúnios e fracassos. Oh! E agora quem poderá me defender? Pois quem poderá defendê-la de tamanha injustiça e tamanho sofrimento é VOCÊ, dona vítima, e mais ninguém! Ou, de repente, somente para que a história se eleve ao tom do humor, chamemos o Chapolin Colorado, que tal? Aí sim, quem poderá lhe defender?

Eu!

Sobre a hipocrisia

 

 

Fingir que é, mas não ser. Ser essencialmente feio — no amplo sentido do termo —, mas colocar-se à frente como se as próprias ações e os aspectos físicos fossem belos o suficiente, tão belos!, ao ponto da própria imagem beirar a perfeição. Uma espécie não-rara de idealismo que permeia as relações de hoje; uma reviravolta na forma, o que não é em é — a hipocrisia.

Hipócrita é o tipo que, mesmo após um banho quente de 45 minutos, defende o uso de sacolinhas plásticas biodegradáveis porque o meio ambiente está em colapso. O tipo que cultua culturas alternativas porque se diz multicultural, cult e [?] não gosta de ler. É o tipo que se mostra responsável socialmente, mas que, voluntariamente, nada faz ou já fez em favor de outro. É o tipo que brada contra a corrupção, mas está disposto a negociar com um policial rodoviário no caso em que não estiver com a documentação do carro em dia. Critica Justin Bieber, mas canta Baby numa boa. O tipo que não vive dias ruins, que nunca frequenta lugares ruins e está sempre sorrindo, em bons lençois. É a garota que, essencialmente piriguete, critica as piri-piri-piriguetes assumidas. Ou mesmo o garoto que, fundamentalmente macho, nega o seu lado sensível. É o tipo que se diz patriota, regionalista, e vive a elogiar os states ao mesmo tempo em que critica aos punhados a terra-mãe. O quase-homem que, por um ou outro interesse, diz o que não diria ou é o que essencialmente não seria. O tipo que defende o seja-você-mesmo e, bem lá no fundo, nunca foi si próprio. Preconiza o trabalho, trabalha pouco; diz-se rico, ganha pouco; compartilha o amor, não ama; diz curtir o amigo, não gosta. Sorri amarelamente e apoia, muito a contragosto, uma ideia que não apoiaria. Acena e aperta a mão em função do protocolo, pois a cabeça noutro lugar, noutro assunto, não se atenta à pessoa. É o tipo que tenta viver de acordo com os princípios da moralidade social ainda que, na essência, seja um indivíduo imoral, libertino e desonesto. É não possuir, mas fingir que possui; não crer, mas fingir que crê; não sentir, mas fingir que sente; atuar, ‘malemá, no pior sentido do verbo. Hipócrita é o tipo que, como já diziam, “oculta a realidade atrás de uma máscara de aparência”; uma espécie não-rara de gente que faz do mundo, pobre mundo, um lugar um pouquinho mais mentiroso, oco, complicado de se viver.

Certa vez, lá pelas tantas de 1500, Montaigne usou uma figura ligada à justiça para ilustrar a hipocrisia. Escreveu que até um juiz seria capaz de rasgar um pedaço de papel para enviar um bilhete amoroso à mulher de um colega, danadinho, da mesma folha onde acabara de escrever a sentença de condenação de um adultério. E é isso que, no presente, vemos por aí: no que se expõe, um mundo de beleza, amor, fraternidade e solidariedade; na vida real, por outro lado, um bando de piriguetes, homens sensíveis, pessoas carentes, malandras, corruptas, pseudo-cults, malemolentes, boêmias, contas-no-vermelho, sorrisos-colgate e egoístas a vagar pelas ruas, pela internet, jogando latinhas de cerveja e bitucas de cigarro pela janelinha, postando fotos e textos como se seus perfis fossem ideais e o dia-a-dia estivesse às mil maravilhas. Ahvá.

Montaigne dizia ainda que comumente nos são sugeridos modelos de vida que sequer quem os propõe — tampouco seus auditores — têm esperança de seguir ou, pior, o desejo de os realizar. Por fim, citando-o quase que literalmente, “deixemos, sendo assim, que as leis e os preceitos sigam o seu caminho: nós tomamos outro, não só por desregramento de costumes, mas também frequentemente por termos opiniões e juízos que lhes são contrários“. Os ditames sociais supérfluos de um lado, nós do outro.

Tiremos as máscaras.

Sobre a morte

 

 

É certo: uma hora o coração pára. Pára o corpo, param mente e sistema. Silenciam-se. Fim. E a certeza de que a vida num instante existe e noutro se finda merece, por si só, uma reflexão. Não porque o refletir-sobre-a-morte seja ato agradável, mas porque, eu creio, ao evitar refletir sobre a morte nós deixamos de melhor vivenciar a vida. E ainda que — como dizia Epicuro há mais de 2400 anos — “não haja nada a temer na morte”, seu insabido momento não permite que nos programemos. Porque eu posso estar aqui, sentado a pensar, dormindo a sonhar, aprendendo a desenhar […] e de repente, sem mais, sequer um segundo a mais, não mais estar. Morrer. Simples assim.

Nascemos, somos criados, criamos e morremos. Entre um ponto e outro, a vida em cores [ler texto]. E às famílias que surgem entre esse ponto e outro, uma primeira dura certeza lógica: exceto nos raros casos em que todos morrem ao mesmo tempo — como, por exemplo, num acidente aéreo —, fatalmente o filho morrerá primeiro que o pai ou o pai, primeiro que o filho. Morrerá primeiro a mãe ou o filho a deixará neste mundo a chorar sua morte. Fato. Obviamente que se levarmos em conta o processo natural dos acontecimentos, é bem possível que boa parte das pessoas mais velhas morram antes que as mais novas, ou seja, provavelmente os atuais pais e avós já tenham falecido quando novos pais e novos avós surgirem. Nesse sentido, a dura reflexão traz à tona uma segunda certeza lógica, esta mais inebriante: a menos que a-da-foice já esteja prestes a bater em nossas portas e morramos antes que todos os outros, inevitavelmente veremos alguns de nossos entes queridos falecendo, mortos. Inevitavelmente — o que significa que não haverá outra saída —, também uma terceira certeza lógica: sofreremos com isso. E então, para ludibriar o sofrimento, sentiremos saudades, guardaremos as fotos, as lembranças, o cheiro, o toque, as manias, as frases de efeito e, se pudermos, trocaremos qualquer coisa por um minuto a mais com a falecida pessoa. Qualquer coisa em troca de um forte abraço a mais, um toque a mais, um beijo a mais, uma ligação a mais, um não a mais, uma repetição da mania que hoje ainda nos irrita. No fim, sonharemos com um tempinho a mais com aquela que, morta, nada mais pode porque não mais estará, não mais haverá. […] Mas se a lógica nos leva à conclusão de que inevitavelmente veremos alguns de nossos entes queridos falecendo, há de se considerar também algo em favor dos ainda-vivos: a conjugação do verbo no futuro — veremos. Isso significa — embora alguns já tenham partido e deixado seus legados — que muitos de nossos entes queridos ainda permanecem respirando, vivinhos da silva. E é bem provável, por exemplo, que alguns deles inclusive estejam conectados à internet neste exato momento ou mesmo dormindo, cozinhando, assistindo a programas patéticos na tv ou enchendo às bordas as paciências de outras pessoas por aí. Ainda estão vivos! […] E neste ponto a reflexão muda de figura.

Até então, três duras certezas lógicas: [1] exceto no caso em que partirmos juntos desta para uma melhor, eu morro antes ou antes morre você. Logo, [2] verei você morrer ou vice-versa. De qualquer modo, caso haja uma boa relação entre nós, [3] inevitavelmente sofreremos. Mas sofrer, neste caso, está conjugado no futuro e, posto que há o diálogo entre mim e você, estamos vivos. A coisa muda de figura porque, enquanto vivos, nada nos impede de matar saudades, registrar novas fotos, sentir o cheiro, o toque, de rir das manias e das frases de efeito. Nada impede um forte abraço a mais, um toque a mais, um beijo a mais, uma ligação a mais, um não a mais, uma conversa sobre a mania que irrita. Bem verdade, só a morte e a falta de consciência sobre as consequências da morte nos impedem de amar na plenitude. Na vida real, você está aí, eu estou aqui e também os nossos estão a respirar por aí.

Por fim, a certeza-mater é que uma hora o coração pára, volta ao nada. Enquanto bate, esforcemo-nos para minimizar o inevitável sofrimento das perdas no futuro. Porque hoje eu estou aqui, a escrever, sentado a refletir, mas de repente, sem mais, posso não mais estar. […] Hoje é pau, é pedra e, para todos nós, ainda não é o fim do caminho. O hoje ainda é, conjugado no presente.

Viva!

Jéssica

 

 

Ela faz parte da família com a qual eu não me relacionava havia muito tempo. De Marialva/PR, bem próxima a Mandaguari — cidade onde nasceu meu querido pai —, chegou de ônibus com a mãe, avô e irmãs para as festanças de fim de ano. Veio para se apresentar à família paulista e sobretudo para conhecer o mar. Tchibum!, repetia. O olhar vago, os movimentos incontidos, gargalhadas guardadas aos que realmente a escutam e uma audição absolutamente incrível. Com os ouvidos, tudo: pedia ininterruptamente para que assobiássemos, buzinássemos os carros, proferíssemos onomatopeias das mais estranhas. Pedia também para que imitássemos o som irritante dos mosquitos, abelhas e marimbondos; isso sempre. Danadinha de tudo, ela gostava. Pulava, virava, repetia, conversava vagamente, batia palmas e tudo outra vez, de novo e novamente. Aprendeu a falar porra, merda e puta quando nervosa. Ah, fala aos montes. Vive sorrindo e cantando. Vive de verdade. 16 anos com carinha de 10. Adotiva, hiperativa, autista e imensamente pura: Jéssica.

Ouvi num dos dias: “Jéssica, mesmo assim, é feliz”. E o tal do mesmo assim me intrigou. Coincidência ou não, à mesma época eu lia sobre os achados de um filósofo — Erasmo de Roterdã, de 1466 —, que nos aconselhou a pensar que a ignorância ingênua é parte essencial do ser humano, sendo responsável pelo que realmente nos traz maior felicidade e contentamento. Assim, atrelada a uma condição que definiu como loucura, o autor definia a simplicidade, a ingenuidade e a humildade como as características humanas para uma vida feliz. As. (…) Brinquei, exalei cofs! sem a mínima vontade de tossir — ela pedia! —, buzinei ao longo de um percurso de 20 quilômetros somente para fazê-la rir à sua moda. E orgulhosamente confesso que me tornei um ótimo imitador do som dos marimbondos, sempre a zunir para que, eufórica, ela repetisse o pedido: Faz barulho? E eu bzzzzz! (…) Conheci Jéssica e sem sequer muito pensar já não tenho dúvida: simples, ingênua e humilde, ela é visivelmente mais feliz quando comparada aos seres humanos ditos como normais-entre-aspas.

Surpreendeu-me sobremaneira, contudo, uma posterior constatação: “Jéssica, mesmo assim, é feliz” foi dita por alguém que possivelmente não é feliz nem mesmo assim. Não é, ponto; intransitivamente. E tal infeliz não é feliz porque não sorri à sua moda, mas à moda alheia, não arregala os olhos de tanta alegria, não fala merda, porra e puta quando nervoso, nunca sentiu o que Jéssica sente ao ouvir zunidos, palmas, assobios, tchibuns!cofs! ou buzinas, não é louco o suficiente para viver a vida que sempre sonhou e, por fim, sendo assim, não é feliz. Finge e, mesmo assim, não é feliz. Não é completo.

Reencontrei parte da família com a qual eu não me relacionava havia muito tempo. Sou grato por tê-la por perto na árvore genealógica.

Jéssica, faz barulho?

 

Ernesto e as minhocas

 

 

Ainda me lembro muito bem dos traços de Ernesto. Era alto, forte, ranzinza, de poucos sorrisos e apaixonado por Luiza, com quem chegou a comemorar bodas de ouro. Tinha um Voyage azul bem cuidado, mas dirigia mal como só ele mesmo. No trânsito, entoava palavrões em voz alta mesmo nas situações em que estava absolutamente errado. Como bom jogador de truco, dizia que a vitória na primeira mão valia mais do que um caminhão de melancia. Acordava diariamente às seis para inventar algo ou caçar alguma tarefa — ainda que inútil — para fazer. Se nada encontrasse, pregava nada em lugar nenhum. Também arrumava o pomar, plantava frutas, legumes e ainda cuidava do sítio em Careaçu como se fosse dele. Pensando bem, simbolicamente era; chegou a morar ali durante meses. Se numa palavra pudéssemos defini-lo, decerto tal palavra seria pescador. Sempre à beira dos rios, pescar era uma de suas paixões e o pantanal mato-grossense, o seu destino ideal. Culpava o vento e a temperatura quando voltava sem peixes, com as mãos abanando. E ainda assim, sempre firme e otimista, não negava quaisquer convites para manhãs de pescaria com filhos, netos e amigos. (…) Ernesto foi meu inesquecível avô paterno.

Certa vez, com o intuito de minimizar os gastos com iscas e ocupar seu tempo livre com mais uma de suas obras, vovô se enfurnou na construção de um minhocário que, de tão bom, perdura até hoje. O problema: não há registros de que o mesmo tenha sido usado sequer uma vez. (…) Então, ao refletir, acabei entendendo.

Aos domingos, bem cedo, ele costumava reunir toda a família para o almoço. Preparavam uma macarronada para 30, churrasco à bancarrota e montavam algumas mesas de truco, muitas vezes com baralhos surrados de tanto manuseio. Varávamos o dia, saíamos de lá tarde da noite. E toda a família ia, além de alguns vizinhos e amigos mais próximos. A casa sempre cheia. Meus primos e eu, ainda crianças, sentávamos aos pés do sofá para assistir aos programas de TV da época — os debochados anos 90 — e também aos jogos de futebol do São Paulo Futebol Clube. Vovô, são-paulino roxo, tinha uma poltrona cativa. E dali, descalço, ele torcia. Dali, descalço, ele transformava os dedos do próprio pé em algo mágico: era praticamente uma ferramenta de guerra. Um bicho. Para uma criança, divertidíssimo.

Pasme: Ernesto conseguia beliscar com os dedos do pé. Ambos. E mais: ele também conseguia fazer com que seus movimentos, lentos, criassem uma atmosfera de suspense, expectativa. O rabo do olho de um lado e, pelo outro, os pés dele vinham vagarosamente. Eis que, quando nos mexíamos, um bote certeiro. E o beliscão era forte, sem dó. Gritávamos, criávamos mecanismos de defesa, apertávamos o pé gigante do vovô como se estivéssemos matando o bicho. Era uma guerra. Era o retrato do amor que ele tinha por seus netos. (…) Crianças, chamávamos aquele bicho de minhocão.

(…)

Talvez — prefiro acreditar — ele tenha construído o minhocário para que, agora, nós pudéssemos lembrar de tudo isso.

Saudades, Vovô.