Lídia

 

 

Corcunda, ela subia a rua a pé numa roupa estampada, típica dos mais antigos, o cabelo branco como algodão doce, a bengala tocando o chão a cada segundo e a expressão de esforço no rosto, já levemente suado. A sombra das árvores bem que ajudavam a amenizar o ensolarado dia, mas a cena, ainda assim, era incomum; afinal, não mais se espera de uma senhora à beira dos 90 que saia de casa, suba num ônibus e vá ao centro da cidade para resolver problemas cotidianos. Surpreendia sobretudo o ritmo um-bengalinha-dois-um-bengalinha-dois incessante, de modo que me esforcei um pouco para alcançá-la. Do outro lado da rua, eu já havia reconhecido aquele jeito ímpar de andar. Era Lídia, minha tia-avó.

Um-bengalinha-dois. Então, de supetão, com um pequeno salto à frente e o coração na boca, foi-se o ritmo. Ela havia se assustado com minha abordagem — Oi, Tia! É que, embora ela tenha nascido no período pós-guerra, em 1922, à epoca da Semana de Arte Moderna, não me parece que a vida urbana da época era tão cruel como a de agora. Frágil, sem a força descomunal daquela jovem paranaense dos anos 20, hoje bem guardada somente na memória, é natural que se assuste. Olhou para mim, reconheceu-me, pousou as duas mãos brancas e enrugadas sobre meu rosto e beijou-me numa das bochechas. Oh, meu filho! Ali, enquanto de nós os perambulantes se desviavam, conversávamos. Nem havia tanto assunto assim, pois nossos encontros — graças a Deus — ainda são frequentes, mas quis saber o que fazia por ali. Não me lembro qual foi a resposta, tampouco me lembro dos assuntos que tratamos durante os dois ou três minutos que ali ficamos. Vê-la bem, saudável, falante: nada ali era mais interessante. […] Então, outro beijo depois, foi-se em frente. Um-bengalinha-dois. Olhei-a de costas, corcunda, indo em frente com sua bengalinha. Senti-me orgulhoso.

Tia Lídia é a velhinha que todo mundo quer ter como avó. Além do cabelinho branco e da bengalinha — o que, por si, costuma atrair os que respeitam e se aproximam dos bons velhinhos —, ela ainda gosta de bingo, baralho, pescaria e missa. É com frequência que vamos juntos a programas nos quais ela fica parada, geralmente sentadinha na cadeira mais confortável, a receber beijos e carinhos alheios. […] No bingo, nem é tão sortuda assim. Com a mania de entortar a boca a cada número não marcado, ela ganha muito pouco, faz questão de comprar as cartelas com as quais joga e se mostra bastante supersticiosa — costuma rabiscar o coringa, aquele elemento central do jogo que já vem marcado na cartela de números. No baralho, escopa de 15. Aliás, para quem não sabe, a escopa de 15 é um jogo de cartas que veio para o Brasil com os imigrantes italianos, lá no início do século XX. Só velhinhos jogam hoje em dia, e Tia Lídia é um deles. Dizem que ela rouba e, quando não ganha, reclama que houve roubo por parte do adversário. Rumores. Na pescaria, até que se dá bem. Veste uma roupa própria para se defender dos mosquitos, um chapelão no melhor estilo mexicano e põe-se a pescar, espetando sôfregas minhocas no anzol a cada peixe perdido, quase sempre por conta de não chegar a tempo de fisgar o danadinho. Não há notícias de que num lapso qualquer tenha confundido a bengala com a vara de pescar. Bom sinal. Na missa não falta. Aliás, não só não falta às missas, mas reza durante todo o tempo em que está livre. Já às 5 da manhã, à beira do quarto onde costuma dormir, ouve-se um bzzz! bzzz! constante. É Lídia rezando, crente em Deus como só ela.

Ao fim do texto, é exatamente com Deus que quero falar. […] Há pouco mais de um mês, saudável ao ponto de soprar com força a velinha 9 e a velinha 0, uma ao lado da outra, Tia Lídia completou 9 décadas. E eu realmente gostaria, Cara — com C maiúsculo —, que ela pudesse soprar três velinhas de uma só vez daqui 10 anos. Ela merece, nossa família merece e o mundo — já carente de pessoas como ela — também merece.

Pode ser?

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