Castelinho

Eu não trocaria nosso castelinho sequer por aqueles castelos lindões que se embrenham pelas montanhas da Europa. Nenhum, por mais valioso que fosse.

O castelinho e uma nova piscininha a cada vaivém das ondas, nossos passeios com pés na areia, depois descalços, na areia de novo, no saguão do hotel, depois naqueles quiosques que desenham a orla e servem comidinhas com gosto de mar. No ar, o funkeado ritmo carioca e as músicas que inventávamos enquanto, juntos, você sobre meus ombros, formávamos à frente dos pés, ao caminhar, as sombras com o sol já inclinado, queimando nossas costas bem ali — quem diria? — na famosa calçada que rebola em pedrinhas pretas e brancas onde as pessoas vêm, vão, cantam e encantam o Rio de Janeiro. Copa, Copacabana. 🎶

Memórias para a vida.

E assim, Emanuel, grão a grão, vamos construindo nosso castelinho. E a vida vai tomando forma como nunca, sem concreto, sem a rigidez de uma arquitetura quadrada, sem aquela coisa sem graça de emoldurar um castelão com tijolos, muros, atalaias e torres de pedra. Nossa vida, filho, é como nosso castelinho, esse pitico da foto: simples, de areia mesmo, do jeitinho que a gente pode, mas bonito como nenhum outro consegue ser.

Obrigado, meu amigão. ❤️
Foi lindo. E sempre será.

Pipas

Aprendeu a deitar sobre a grama com o pai. Aos 2, pouco se importa com os insetos que às vezes ali aparecem e confia na fofura do gramado, tanto que não são incomuns os mergulhos seguidos de uma ou outra testada no chão verde. Nem vermelho fica. E, de tão acostumado, Emanuel se deita no jardim ao lado do pai grande-gigante, como ele diz, enche a roupa de mato seco e assim, olhando para cima, depara-se com o céu azul clarinho. Nele, vê aviões enormes, outros pequenininhos, pássaros voando baixo, pertinho, urubus voando bem altão; vê pipas dançando e nuvens em forma de jacarés e dinossauros. E depois enjoa, vira de bruços sobre a grama e volta a brincar feliz. Levanta, corre, joga bola, bolinhas, empurra o caminhão de brinquedo, mexe com água, com a motoca plástica, o violãozinho desafinado, depois com as plantas, sente o cheiro, sente o vento, molha-se todo e logo seca sobre o mato seco. E nem precisa estar seco para mergulhar de novo e, novamente deitado, fascinar-se com a Lua que, embora popularmente conhecida pela noite, vive a nos visitar brilhante durante o dia em dias de céu azul clarinho, desses ótimos para empinar.

Quando pequeno, aprendi a fazer pipas com meu pai. E ainda me lembro bem da configuração das varetas de bambu ajeitadas com uma linha e colagens de papel de seda. Pudera, o desafio proposto pela escola era justamente esse: erguer uma pipa feita à mão. Na ocasião, o avô do Emanuel fazia as vezes de pai sob um céu muito parecido: azul clarinho, grandão, com pipas dançando e nuvens em forma de jacarés e dinossauros. Memórias de uma infância feliz, dos shows à família na sala com direito a sanfoninha e fone de ouvido, das manhãs de domingo no clube, viagens ao sítio enrolado em cobertas, dos pacotes de figurinha que papai me entregava ainda de terno e times de botão espalhados no chão da cozinha. O pai da época, que hoje faz as vezes de avô, era grande-gigante, fascinante quando visto de baixo para cima.

Há pouco, ainda dormindo, Emanuel perguntou à mãe se ela via as pipas. No sonho dele, certamente dançava num céu azul clarinho a pipa do herói grande-gigante que, como pai, eu me tornei na mente do Emanuel. Saí do quarto rezando para que seja mais uma dessas pipas que voam eternamente, como já há três décadas voa em minhas lembranças a pipa feita por meu pai na escola, meu herói grande-gigante.

Ruído

Nem todos entendem o motivo, mas, para trabalhar, os DJs precisam de bons fones de ouvido. Acontece que, por conta de um bocado de fatores, as músicas precisam ser ouvidas antes da reprodução, antes de todos ouvirem. E, enquanto outros dançam, os DJs estão assim: vestidos com headphones, sempre ouvindo e preparando a próxima música.

Nem todos entendem o motivo, mas há quem seja simplesmente bom. Há quem pense pouco ou nada em si justamente para se doar, para se entregar de corpo e alma aos outros sem qualquer razão aparente. E há, tão nobre, tamanha a evolução espiritual, quem prefira ser bom e fazer o bem o tempo inteiro. Como se a benevolência fosse — e é — um dom.

Eu ainda não entendo o motivo — afinal de contas, não o tirava dali por nada —, mas quando abri a mochila de equipamentos numa de minhas centenas de noites como DJ, meu fone não estava lá. Esqueci, tirei. E, para um DJ, nada é como não ouvir as próximas músicas. Nada. Nada a fazer. Ou quase nada, pois é muito comum que o cérebro associe situações como essa aos benevolentes. E aí, quando o pior está por vir, eles surgem exercendo, literalmente, o que têm de melhor: a bondade.

Eu entendo o motivo que fez meu pai sair daquele churrasco. Sempre rodeado de amigos, ele nutre paixões pelo barulho da grelha e copos a tilintar. E não foi necessário muito para que ouvisse também o toque do telefone e um chamado de ajuda: houve um problema, pai, o fone não estava lá e eu gostaria de saber se o Sr. estava por ali, na região nobre do Pacaembu. Não estava. O queima-carne acontecia em Guarulhos. E Guarulhos não curte viver encostado. É longe.

De tão bondoso, ele resgatou o fone de ouvido em minha casa e, minutos depois de se despedir dos amigos antes do previsto, atravessou a Marginal Tietê para me encontrar no Pacaembu e entregá-lo; não o que eu costumava usar, mas outro, pego por engano. E mesmo sabendo que o fone de ouvido reserva serviria, ele não se deu por satisfeito: retornou a Guarulhos, resgatou o outro fone de ouvido e, duas horas depois de se despedir dos amigos antes do previsto, atravessou novamente a Marginal Tietê para me encontrar outra vez no Pacaembu e entregar o fone de ouvido correto, sem me avisar. E tudo porque — eu entendo bem o motivo — meu pai quer fazer o bem a todo custo, a todos, sem esperar nada em troca. É um ser humano exemplar, benevolente, com o coração bom como poucos são.

Hoje não precisei do fone de ouvido para ouvir meu pai dizendo, com um olho entreaberto, que sua velhice está chegando. Disse que passará por uma cirurgia ocular na sexta-feira e, embora com muita fé acreditemos que o procedimento ocorrerá bem, a mim soou como um ruído. Um daqueles sopros que, tão silenciosos, soam como um estampido ou um forte zunido no pé do ouvido. Não foi fácil, assim como não me parece fácil entender por que seres humanos tão bons, com tão raro dom, sofrem tanto — ou até mais — com a velhice e com os mesmos males que nós, reles mortais.

Eis o tal mistério?

A caatinga de Gucoff

Praça da Língua

 

O garoto petrificado em frente ao pôster hesitou quando me viu. Foi um daqueles momentos em que o cérebro — talvez por silenciosamente entender que há algo muito especial prestes a acontecer — parece deletar propositalmente as desimportâncias só para que a verdadeira lição a ser absorvida permaneça em seus miolos, estes que acabam por armazenar exclusivamente a história por meio da qual geralmente narramos as lembranças e a própria vida. Confesso, aproximei-me porque senti pena. Ele era novo, franzino, cabelos curtos, aparentava 15 e ali seguiu como pedra quando resolvi, por sorte ou obra divina, indagá-lo sobre seu trabalho de iniciação científica. Dali em diante, quatro descobertas: primeiro, descobri que não só a postura do jovem, mas também o tema da investigação repelia os espectadores: ele defendia com amarelados unhas e dentes a pedregosa e retorcida caatinga — vegetação secularmente classificada como árida e paupérrima — com um discurso rico e frondoso. Também descobriria minutos depois que aquela era a primeira apresentação do jovem garoto naquela tenda calorenta repleta de pesquisadores, cientistas e ventiladores mequetrefes que pouco nos refrigeravam. Estávamos em São Luís, Maranhão e lá no fundo — concordo, é pura crença — aquela apresentação mudou tanto a minha vida, tanto!, que eu não tenho dúvida de que aquele garoto franzino de 15 anos estudou a tal vegetação ao longo de todo um ano só para timidamente, feito pedra, levar-me à terceira descoberta: meu sonho.

Eu nunca soube o nome dele e não me lembro exatamente de onde vinha, embora haja indícios de que vivesse à beira da caatinga. Uma pena. Fato é que um garoto sem-nome, franzino, 15, tímido, amante de pesquisa e realmente transformador me fez refletir naquela mesma noite, quando sentei em frente ao computador e a uma das mesas do hotel à beira-mar, arquitetonicamente desenhado como se fosse um veleiro. Oras, pensava, por que não estimular outros jovens como aquele na árdua tarefa de descobrir e defender seus anseios com unhas, dentes e o que mais lhe dessem nas telhas? Por que não acreditar que mais experiências como aquela pudessem acontecer? Todos de 15, 18, de cabelos curtos, longos, de sorrisos metálicos, amarelos, leitores, YouTubers, de riso fácil, tímido, de texto fluido, emperrado, de tema descoberto, a ser descoberto, de direita, esquerda, de tinta no cabelo, careca, habitante da caatinga ou Mata Atlântica: por que não todos esses jovens?

Muito tempo se passou até que Gucoff pudesse sentar à minha frente. Nova, franzina, cabelos curtos, aparentava 15 e ali, na mesa, tímida, também seguiu como pedra até iniciarmos um debate caloroso sobre o tema de sua primeira investigação científica. O tema, em si, a priori não me importava. E não importava, pois, depois do garoto sem-nome, o meu objetivo em ocasiões como essa sempre foi o mesmo: descobrir a caatinga em cada um. Afinal, qual assunto poderia transformar Gucoff a tal ponto que, frondosa como a tal vegetação, ela também pudesse servir de estímulo aos outros como o jovem garoto serviu a mim? E, juntos, horas a fio, Gucoff e eu descobrimos.

Recebi há pouco uma declaração amorosa de Gucoff sob a forma de um texto bem escrito. Nas entrelinhas, sua mensagem trazia uma carga explosiva de estímulos concentrados que me impulsionam a seguir acreditando na lição aprendida já na primeira descoberta: nem sempre uma vegetação rústica, espinhosa, seca e retorcida é pobre como aparenta; muito pelo contrário, dela muitos bons frutos podem surgir.

#AvanteSyans

Daniel

 

Daniel

 

A corvina é um peixe. E é só isso que eu sei. Aliás, sobre peixes eu sei pouco. Sempre fui um pescador de meia-tigela. Conheço mais de futebol, desse sempre gostei, embora não tenha sido um jogador tão bom assim. Minha querida mãe diz que eu mais ficava no chão do que jogava; era do tipo cai-cai. Hoje é conveniente colocar a culpa em algo ou alguém e eu costumo culpar meus joelhos pelo mau desempenho nos campos, ambos — mais o direito que o esquerdo — tortos desde pequeno. A verdade, confesso, é que eu era um típico pé-torto, literalmente. Cheguei a usar botas ortopédicas quando criança. Ah, e era um pé-torto também com as mulheres. É que sempre fui muito tímido e, sendo assim, fazia pouco para conquistá-las. Justamente por isso — e com o auxílio do fato de que nunca fui um galã de novela — não conquistava muitas delas. Até que namorei com algumas, mas nunca por conta de tê-las conquistado num papo ousado; as conquistas eram geralmente obras do acaso. Pescaria, futebol e mulheres, apesar de tudo, sempre estiveram presentes em minha vida, também desde a infância — no caso das mulheres, evidente, desde a adolescência. Eram rotineiras minhas visitas a um pesqueiro qualquer, ao campo de futebol do Esporte Clube Vila Galvão nas manhãs de domingo ou às festinhas juvenis repletas de possíveis paqueras. Cresci assim e uma improvável história da minha vida contada em livro traria, necessariamente, esses capítulos.

Certa vez, numa pescaria, uma vara equipada com molinete e uma boa linha teve suas iscas lançadas ao mar. Iscas, no plural. É que na linha havia, como se fosse uma espinha de peixe, coitado, vários anzóis. Vários, uns três. E há de se concordar que três anzóis para a mesma vara de pescar é um número considerável. Eu no barco, sentado, uns 15 de idade, só vendo. Segurando a arma estava Tio Daniel. Dizia que pescaria três peixes numa só fisgada. Três corvinas. Em instantes, a vara envergou. Envergou tanto que meu coração pulou de alegria. Pesquei um! A fisgada parecia ter sido forte o bastante para que nem fosse necessária a puxada. Cheguei a saltar, mas Tio Daniel pediu para que eu ficasse ali, aguardando paciente como são os bons pescadores. A linha percorria a água no mesmo ritmo em que as pobres corvinas tentavam se livrar da armadilha e eu imaginava que não seria possível identificar se, de fato, três peixes estariam ali. Dois ou três minutos depois, para minha surpresa, Tio Daniel tirou os anzóis da água. Três corvinas. Três. Pensando bem, talvez ele tenha me pregado uma peça — como as que meu querido pai pregava, fisgando um peixe e pedindo para que eu puxasse, dando impressão de que eu mesmo havia pescado —, mas aquela história me marcou. Até hoje.

Aos domingos, quando pela manhã jogava bola, acordava bem cedo. Se até hoje, adulto mergulhado em trabalho, sou do tipo noturno, imagine na época. Imaginou? Errou. Aos domingos eu acordava bem cedo. 6h00 e nem ligava. Adorava jogar futebol no — à época aparentemente muito mais gigante — campo de futebol do Esporte Clube Vila Galvão. Vestia a 8, um short azul curto e uma camiseta comum, pois a de jogo nos entregavam no vestiário. Era um bando de moleques correndo atrás da bola, sem a mínima noção de posicionamento, e as mães gritando na arquibancada. Corre, filho! Vá atrás da bola! E, exceto pelos goleiros que fincavam o pé sob a gigantesca trave, todos os outros corriam, do zagueiro ao ponta esquerda. Chegava a subir poeira do campo, numa espécie de nuvem de areia recheada de molecada. Às vezes até o técnico — geralmente o amigo bêbado dos pais — parava de dar orientações à beira do gramado para também correr. Era uma bagunça. Pela manhã, em casa, era possível acordar com o cleck-cleck das travas da minha chuteira no chão; eu vestia a 8, um short azul, uma camiseta comum e a tal chuteira com travas que faziam barulho no caminhar. A primeira, lembro-me, foi um presente do Tio Daniel. Ele dizia gostar do meu estilo meia-direita e não havia uma só partida em que não me dava força no pré-jogo. Criança, encarava aquilo com muita seriedade e e as palavras de motivação daquela figura adulta ecoava como algo incrivelmente profissional. Ecoam como lembranças até hoje.

Tio Daniel dizia que eu tinha sorte com as mulheres, que todas as minhas namoradas eram magras, bonitas e charmosas. E eu dizia, pela força que me dava contra minha timidez e por todo o tempo que gastava nas avaliações de garotas, que ele seria padrinho do casamento entre mim e a sortuda que porventura subisse no altar ao meu lado. E não havia uma só vez que ele não me cobrava, a cada vez que nos reencontrávamos. O tempo passou e na última vez que me encontrei com Tio Daniel, há alguns meses — creio que estávamos sem um encontro havia 3 anos —, a primeira coisa que fez foi me abraçar forte e beijar meu rosto, como sempre fazia. Depois perguntou sobre as mulheres, cobrou o cargo de padrinho e pediu para que eu mostrasse a foto da namorada, ali mesmo no celular. Aprovou. Perguntou, então, se eu andava jogando bola, se continuava sendo aquele camisa 8 promissor. Por fim, lembramos com muitas gargalhadas a história das corvinas. Ele teimava em não assumir o truque e reiterou que pescara, de fato, as três de uma só vez. Será?

Hoje, infelizmente, recebi a notícia de que eu nunca saberei a verdade sobre essa histórica fisgada. Nunca. Hoje, a notícia da morte do Tio Daniel me pegou de surpresa, colocou-me de bruços no tablado como num nocaute relâmpago. Um soco certeiro na fuça. Foi-se um dos pescadores mais habilidosos. Foi-se um técnico de futebol de primeira. Foi-se embora um dos meus padrinhos.

Um beijo, Tio.